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Machado de Assis — Seleção de contos para Cinema

Machado de Assis interferido por Mirdad

Ontem passei 9h30 analisando alguns contos de Machado de Assis, o mestre. Cheguei à seguinte lista abaixo (em ordem da minha preferência), com pequeninos resumos básicos que fiz, para servir de estímulo para quem sabe adaptá-los em uma oportunidade futura, quando meu projeto pessoal de migrar ao Cinema estiver concluído.

Recomendo aos roteiristas revistar Machado de Assis, cujos contos abaixo são imortais e atemporais.


01) A segunda vida

Diálogo entre um Monsenhor e um desconhecido, que passa a contar a sua inacreditável história. O eclesiástico considera-o um louco, e manda chamar a polícia. Só que, enquanto essa não chega, o desconhecido conta a sua história: “Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e...”. 

Contou a sua experiência do outro lado, até que “convidaram-me a tornar à terra para cumprir uma vida nova”, por ser a milésima alma a chegar por lá naquele ciclo. Ele recusou, mas foi obrigado: “Era uma lei eterna”. Então, “a única liberdade que me deram foi a escolha do veículo; podia nascer príncipe ou condutor de ônibus. Que fazer?”. Arrematou habilmente ele negociou o seu retorno com a condição única de nascer experiente (cumprindo aquele eterno desejo de “Quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje”), sabendo de tudo desde o início. 

A partir daí, o desconhecido narra como foi a sua vida extremamente calculada, por ter a mesma consciência da última vivida (que tinha morrido experiente, aos 78 anos), até o clímax que o levou ao Monsenhor.


02) O enfermeiro

O enfermeiro quarentão aceita uma boa oferta para cuidar do Coronel Felisberto, só que ele não sabia que o mesmo era um “homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos”. Passa por humilhações incríveis (“Era eu sozinho para um dicionário inteiro”), até agressão física, mas resiste no cargo.

O Coronel piorou da saúde, fez testamento, agravou as agressões ao enfermeiro, até que um dia este o matou. Teve sorte que ninguém percebeu que tinha assassinado o Coronel, e todos acabaram aceitando que o mesmo morreu dormindo. Só que o enfermeiro é consumido pela culpa. Retorna à capital, mas tem que voltar ao interior porque descobriram que ele é o único herdeiro do Coronel, que não tinha filhos. Ficou consumido pela culpa, achando que era uma cilada, mesmo assim, ele retorna ao interior.

Já foi adaptado por Mauro Farias como "O Enfermeiro" (1999), com Matheus Nachtergaele e Paulo Autran.


03) Anedota pecuniária

Homem solitário que amava o dinheiro de forma extrema. “Não ama o dinheiro pelo que ele pode dar, mas pelo que é em si mesmo. Não ganha para esbanjá-lo, vive de migalhas; tudo o que amontoa é para a contemplação”. À noite, acorda para ir olhar o dinheiro, ouro, títulos, apenas para fartar-se a olhá-los. A fala resume: “Dinheiro, mesmo quando não é da gente, faz gosto ver”.

Não era casado – “Casar era botar dinheiro fora”, mas uma sobrinha órfã vem morar com ele. O sócio no jogo se envolve com a sobrinha e pede a mão dela em casamento. Ele nega veementemente. E a sobrinha chora, mas pede para o amado esperar. Para saldar uma dívida de jogo, o homem aceita o casamento e sofre pela solidão em casa, agravada quando o casal se muda para a Europa.

Aí, o destino coloca outra sobrinha no seu caminho, também órfã. Esta cuidou dele melhor que a outra, e ele ficou mais afeiçoado ainda. Só que, para não perdê-la como a anterior, passou a ser extremamente rigoroso com ela, cerceando os seus movimentos ao máximo. Mas ela se envolve com um rapaz, que vem dos EUA com uma coleção de moedas que o pecuniário nunca viu. Pela troca, ele aceita o novo casamento da sua última sobrinha, legado à solidão da contemplação de seu novo dinheiro.


04) A igreja do Diabo

O Diabo resolve fundar a sua igreja: “Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem ritual, sem nada”. Para ele, “Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões”, pois, “Enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo”.

O Diabo vai até Deus, que permite que faça. E a igreja é um sucesso de público. Porém, o Diabo se frustra; com o passar do tempo, os seus fiéis passam a fazer o bem às escondidas. Enfurecido, vai reclamar para Deus, que o alerta: “Que queres tu, meu pobre Diabo? É a eterna contradição humana”.


05/06) O machete + Um homem célebre

“O machete”: Músico de violoncelo vive a angústia do seu instrumento não ser popular como o do músico de “machete” (cavaquinho). Um amigo, fã do violoncelista, tenta convencê-lo do seu talento. No final, a mulher do violoncelista o troca pelo tocador de machete, amigo de ambos.

“Um homem célebre”: Famoso compositor de polcas (músicas populares da época), fica se martirizando para compor uma peça clássica. Admira os clássicos, e quer compor como eles, mas não consegue. E, quando faz, é mera memória de uma peça que já existe. Em contrapartida, continua a compor polcas melhores, mais populares, sucesso de público. Mesmo assim, fica cada vez mais irritado “As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo”. Acaba casando e, apaixonado, compõe um noturno para ela. Porém, ela pergunta: “Não é Chopin?”. Era mais um fragmento da sua memória. Morreu consagrado pela polca, de bem com os homens, mas de mal consigo mesmo.

Um homem célebre” já foi adaptado por Miguel Faria Jr. em 1974.


07) Pai contra Mãe

Um homem sem ofício definido, mudando sempre de emprego, instável, resolve se tornar pegador de escravos fugidos. Acaba se casando com uma mulher, que traz a tia para morar na mesma casa. A situação passa a se agravar e, na falta do emprego fixo, na instabilidade de caçar escravos, tudo começa a faltar. Para piorar, a mulher fica grávida.

A tia faz um inferno para que o homem arrume um emprego melhor. Fica cada vez mais difícil encontrar negros fugidos, tanto pela concorrência com outros caçadores, quando por outros motivos. Nasce o filho, e a miséria tá braba. A tia aconselha dar o filho para adoção. O pai não quer de jeito algum. Ele se concentra em achar uma negra fugida, que tem uma excelente recompensa prometida. Nada, não acha, dias e dias sem sucesso.

Quando resolve entregar o filho à adoção, encontra a escrava. Batalha para conseguir pegá-la. Ela está grávida e suplica pela liberdade, que se voltar será duramente castigada, e perderá o seu filho na barriga. Impassível, o homem a entrega para o patrão e ganha a recompensa, que poderá tirar a família da miséria. Leva o seu filho de volta pra casa, e encerra o conto assim: “Nem todas as crianças vingam”.

Já foi adaptado por Sérgio Bianchi como "Quanto Vale Ou É Por Quilo?" (2005).


08) A chinela turca

Homem recebe uma visita inesperada de um Major que passa a lhe contar uma história. O homem é inserido nessa história, com pegadas surreais kafkianas, passa a vivenciá-la, de madrugada, em que é acusado de roubo de uma chinela pela polícia, levado a um encontro em que é obrigado a casar com a dona da chinela, escrever o seu testamento e depois tomar veneno.

Situação crítica, consegue escapar, chega à casa do Major que lhe pergunta: “Fim do último quadro. Que tal lhe pareceu”?, retornando à realidade. Frase final do conto: “O melhor drama está no espectador e não no palco”.


09) Primas de Sapucaia!

Homem se apaixona apenas por ver ao longe uma mulher. Acompanhando as suas primas numa missa, a enxerga novamente andando na rua. Entenda: “Saí tonto, mas saí também desapontado, perdi-a de vista na multidão. Nunca mais pude dar com ela, nem ninguém me soube dizer quem fosse. Calcule-se o meu enfado, vendo que a fortuna vinha trazê-la outra vez ao meu caminho, e que umas primas fortuitas não me deixavam lançar-lhe as mãos”.

Passou a procurá-la perdidamente, mas não encontrou. Sem recurso, só restou sonhar o encontro com a dama incógnita. Imagina toda uma relação, conhecendo-a, namorando-a, e fugindo com ela (era casada). Tempo passou, o homem fez uma viagem com um amigo. Este, tinha acabado de tirar uma mulher do seu marido, e foi morar com ela nessa cidade. Quando o homem foi conhecê-la, era exatamente a dama incógnita e, pior, com o mesmo nome imaginado no sonho: Adriana.

Depois das férias, a grande ironia: o amigo se ferrou com a Adriana, que se revelou uma mulher miserável, insuportável, que legou um comentário desse: “A minha vida gorou”. Pior: seis meses depois, Adriana abandonou o amigo por um outro homem. Pior mais ainda: o amigo correu atrás, e se reconciliou com a viúva negra que, no fim, levou-o à morte. Ou seja, o homem apaixonado (o narrador do conto) pulou uma senhora fogueira.


10) Entre santos

Um capelão presencia um diálogo fantástico, à noite. Quatro santos da sua igreja (São José, São Miguel, São João Batista e São Francisco de Sales) descem dos seus altares e conversam sobre os fiéis da igreja e os seus devotos, revelando as suas angústias, peculiaridades, hipocrisias, desejos, limitações, surpresas. O brilho deste conto é ser apresentado às análises de seres divinos sobre o pobre e imprevisível ser humano, sendo que estas análises foram criadas por um mero mortal escritor.


Machado de Assis interferido por Mirdad

11/12) A cartomante + A causa secreta

“A cartomante”: Triângulo amoroso. Homem se apaixona pela mulher do amigo de infância (“Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca”). Entrega-se à paixão, e o amigo não desconfia de nada. Até que o homem recebe uma carta anônima “que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos”.

Afastou-se então da casa do amigo, e a mulher foi consultar-se a uma cartomante para saber o que estava acontecendo. O amigo corno passou a ficar estranho, até que o homem recebe outra carta: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora”. O homem, desconfiado, passa a ficar paranoico com a carta, enche-se de dúvidas e, por coincidência, acaba se consultando na cartomante que a mulher foi. Destaque para a paranoia e ao diálogo irônico com a cartomante. Final trágico.

Dá para mesclar “A cartomante” com diversos pontos do conto “A causa secreta”, que também é sobre um triângulo amoroso, enriquecendo a adaptação.

“A cartomante” já foi adaptada duas vezes, em 1974 e 2004.


13) Galeria póstuma

Um homem nobre, querido por todo o bairro, faleceu e deixou a todos consternados com isso. Rico e letrado, prestativo, amigo, alegre, etc. Viúvo, morava com ele apenas um sobrinho. Após o enterro, os amigos mais próximos reuniram-se para exaltar as qualidades do falecido. Até que o sobrinho descobre um diário nas gavetas do morto. Pois, ao lê-lo, surpreende-se com o tio descascando geral todo mundo, inclusive ele (“Quis reler, e não pôde; essas poucas linhas davam-lhe a sensação de um espelho”).


14) Último capítulo

Um homem extremamente azarado, (“caipora”, na descrição de Machado), à beira do suicídio, rememora a sua vida repleta de coincidências infrutíferas até chegar ao ponto de “Cansado e aborrecido, entendi que não podia achar a felicidade em parte nenhuma; fui além: acreditei que ela não existia na terra, e preparei-me desde ontem para o grande mergulho na eternidade”.


15) Pílades e Orestes

Bela história de cumplicidade entre dois amigos homens. “A vida que viviam os dois, era a mais unida deste mundo. Quintanilha acordava, pensava no outro, almoçava e ia ter com ele”. Ambos se apoiavam, trabalhavam juntos, ajudavam-se em diversos casos da vida. Até que o mais influenciável se apaixona pela prima, e pensa em casar com ela.

Vai até o amigo conselheiro pedir sua aprovação, e este reage assim: “Não me pergunte nada; faça o que quiser”. Isso ocasiona diversos questionamentos no influenciável, e a paranoia cresce ao ponto de criar um pesadelo em que o conselheiro e a prima se amam, e ele é o seu rival, portanto. Fica tão paranoico que faz um testamento em que obriga a prima a casar com seu amigo, o que acaba acontecendo, e ele ainda vira padrinho. Morre por uma bala perdida, e o conselheiro fica com a culpa lhe consumindo.


16) Verba testamentária

Conta da vida de Nicolau, personagem complexo, sofrendo de uma moléstia estranha: era bipolar. Quando criança, destruía os brinquedos das outras crianças. Depois, conforme crescia, destruía as roupas, as faces. Família trancava-o em casa, ele ficava dócil, amável. Quando solto, voltava a destruir. Sempre destruía algo que fosse melhor que o seu. Era capaz de bater nos escravos, no cachorro, tratar todos muito mal, dormir, e no dia seguinte, ser a melhor das criaturas, dócil, afável. “Os amigos eram os rapazes mais antipáticos da cidade, vulgares e ínfimos”.


17) Singular ocorrência

Homem casado se envolve com uma bela mulher pobre que não sabe ler. Ensina-a, e passa a ter relações com ela, protegendo-a, ensinando-a. Mora sozinha, “não tendo família para passar a festa de S.João, ia jantar com um retrato”. Até que, um sujeito reles e vadio, por um mero acaso, resolve abrir a sua felicidade ao homem, contando detalhes da aventura que teve com uma mulher, que é a mesma que era amante do homem.

Este, paga-o para levá-lo até a mulher, que é confirmada como a traidora. A amante que trai. Foi a única vez que fez, por nostalgia da lama. O homem, perturbado, passa a inventar situações que ela não tinha feito isso, até que ela some, provocando intensa angústia e diversos meios para encontrá-la. Quando a encontra, a perdoa pela traição, compra uma casa para ela e até tem um filho.


18) Uma noite

Um soldado conta para o outro uma história sua que nunca compartilhou. Conheceu o amor por via de uma viúva jovem, com filho novo e mãe velha. As famílias se aproximaram. Eles se apaixonaram. Só que, de repente, num dia qualquer, a viuvinha tem um surto de loucura brabíssimo (cena clímax), mordendo até a mão dele.

Vai imediatamente para o hospício, e ele se distancia dela. Fica amargurado. Diversos anos depois, a reencontra por acaso numa peça de teatro. Aparentemente curada da loucura, tornou-se atriz de uma companhia. É a chance de reatarem. Ou não. Um trágico desfecho evita que o soldado conte o final de sua história.


19) Terpsícore

Um casal passa por sérias dificuldades financeiras, até que o marido ganha na loteria. Salda as dívidas, mas ao invés de poupar, começa a torrar o dinheiro comprando um vestido novo para a esposa e dando uma festa de arromba (“um pagode”).

É um conto para celebrar a vida. Mesmo diante das maiores dificuldades, vive-se bem, celebrando. Retrata um pouco o hedonismo, tão presente nos dias atuais. Destaque para a descrição de como se conheceram, e da festa.


20) O empréstimo

Um homem sem recursos vem pedir um empréstimo de cinco contos ao tabelião para abrir um negócio. O conto todo é o diálogo como o tabelião consegue negar todos os pedidos de empréstimo, que aos poucos vai baixando de valor, até chegar ao mínimo de cinco mil réis. E a soberba do conto é que, no final, mesmo com os míseros cinco mil réis, o homem vai embora feliz da vida, como se tivesse conseguido os cinco contos.


21) Noite de almirante

Marujo faz juras de amor com uma mulher, separa-se por 10 meses (em que foi fiel a ela) devido ao trabalho, e quando volta, ela está com outro. Frustração plena no diálogo dolorido do reencontro (ainda mais que ele trazia um presente especial para ela). “Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir com você para o sertão. Mas vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele...”.


22) Conto alexandrino

Dois filósofos buscam provar uma nova teoria, de que se o ser humano beber o sangue dos animais, passa a ter a qualidade primordial deste. Por exemplo, se beber o sangue de um rato (desde que este seja extraído debaixo do escalpelo, para que o sangue traga o seu princípio), o homem vai virar um ladrão autêntico.

Passam a exterminar diversos ratos e a beber o sangue deles. Até que um começa a roubar a ideia do outro. Provaram a teoria. Só que passaram a roubar documentos valiosos, até serem pegos. Por fim, acabam sendo dissecados (assim como fizeram com vários ratos) por Herófilo, o inventor da anatomia, que conseguiu aprovação do Governo para dissecar prisioneiros em nome da ciência.

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