Pular para o conteúdo principal

O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar — Parte 03

Julio Cortázar interferido por Mirdad

“A verdadeira condenação é aquilo que já está começando: o esquecimento do Éden, ou seja, a conformidade bovina, a alegria barata e suja no trabalho e o suor na testa e as férias pagas”

“Agora se dava conta de que, nos momentos mais altos do desejo, não soubera meter a cabeça na crista da onda e passar através do fragor fabuloso do sangue. Amar a Maga fora como um rito do qual já não se esperava a iluminação; as palavras e os atos tinham se sucedido com uma inventiva monótona, uma dança de tarântulas sobre o chão em forma de lua, uma viscosa e prolongada manipulação de ecos. E, durante todo o tempo, esperara dessa alegre embriaguez algo como um despertar, um ver melhor aquilo que o rodeava, fossem os papeis pintados dos hotéis ou as razões de qualquer um dos seus atos, sem querer compreender que se limitar a espera, abolia toda e qualquer possibilidade real, como se, adiantadamente, se condenasse a um presente estreito e mesquinho”

“Os três gostavam, cada um à sua maneira, da leitura comentada, das polêmicas, pelo gosto hispano-argentino de querer convencer e jamais aceitar a opinião contrária. Adoravam, ainda, as possibilidades inegáveis de rir como loucos e se sentir acima da humanidade lastimosa, sob pretexto de ajudá-la a sair da sua fedorenta situação contemporânea”

Julio Cortázar e o amor novo
(foto da esquerda: Suzanne Bouron)

“Durante toda essa tarde, Oliveira assistiu, outra vez, uma vez mais, uma de tantas vezes mais, testemunho irônico e comovido do seu próprio corpo, às surpresas, aos encantos e às decepções da cerimônia. Habituado, sem saber, aos ritmos da Maga, de repente um novo mar, uma agitação diferente o arrancava aos automatismos, confrontava-o, parecia denunciar obscuramente a sua solidão, enredada de simulacros. (...) Encanto e desencanto de passar de uma boca para outra, de procurar com os olhos fechados um pescoço onde a mão dormiu, recolhida, e sentir que a curva é diferente, uma base espessa, um tendão que se crispa rapidamente com o esforço de incorporar-se para beijar ou morder. Cada momento do seu corpo, diante de um desencontro delicioso, ter de estender-se um pouco mais, ou baixar a cabeça para encontrar a boca que, antes, estava ali perto, acariciar umas ancas mais estreitas, provocar uma réplica e não a encontrar, insistir, distraído, até se dar conta de que era preciso inventar tudo outra vez, que o código não fora seguido, que as chaves e as cifras terão de nascer de novo, ser diferentes, responderem a outra coisa. O peso, o cheiro, o tom de uma risada ou uma súplica, os tempos e as precipitações, nada coincidia, embora fosse igual, tudo nascia de novo. (...) Sendo imortal, o amor brinca de inventar-se, fugindo de si mesmo para regressar na sua espiral surpreendente, os seios cantam de outro modo, a boca beija mais profundamente ou como de longe e, num momento, onde antes havia algo como a cólera e angústia, é agora o jogo puro, a agitação incrível, ou, ao contrário, na hora em que, antes, caía no sono, no murmúrio de coisas doces e ridículas, agora existe uma tensão, algo incomunicado, mas presente, que exige incorporar-se, algo como uma raiva insaciável. Apenas o prazer em seu último esvoaçar é igual; antes e depois, o mundo se fez em pedaços e é preciso criá-lo de novo, dedo por dedo, lábio por lábio, sombra por sombra”

Trechos extraídos do livro O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d