Pular para o conteúdo principal

Estação Infinita, de Ruy Espinheira Filho — Parte 01

Ruy Espinheira Filho
Foto: Mário Espinheira (interferida por Mirdad)

“Por isso
suave é a notícia
de sua morte.
                                Pois
você
fez o percurso sem ceder espaço
aos logros da
esperança;
                                       ao sonho,
que nos desperta para que o vejamos
apenas
desfazer-se no ar.

Assim você: na plena
                                                  claridade,
rejeitando os véus com que
nós todos nos protegemos,
nos mentimos,
contra a luz implacável de cada instante,
de cada
mínimo tremor
do coração.

(...)

Você foi, entre nós, na sordidez
de cada dia, a dura limpidez
de quem nada buscou, pois tudo o que há
é um gesto, um lampejo – e a noite cai”

--------

“Só depois é que amamos
a quem tanto amávamos;
e o braço se estende, e a mão
aperta dedos de ar.

(...)

Só depois é que sabemos
lidar com o que lidávamos.
E meditamos sobre esta
inútil descoberta

enquanto, lentamente,
da cumeeira carcomida
desce uma poeira fina
e nos sufoca”

--------

“O avô descansa
de quase um século.
O rosto é sereno
(não sei como pode
mostrar essa calma
após tanto tempo)
e as mãos despediram
todos os gestos.

(...)

Descansa tão fundo e
alto que é impossível
despertá-lo, saber
mesmo onde repousa.
No entanto está em nós
e nos impõe seu traços,
cor de olhos, jeito
de andar, sorrir, falar.

E o mais difícil de
cumprir:
               a insuavizável
dignidade”

--------

“Penso nelas com amor. Não como as amei outrora,
mas como foram-se acomodando em mim
ano após ano, umas
com cálida harmonia, outras
com certo incômodo, outras
de modo fragmentário, e algumas
tão sutilmente             que talvez
sejam apenas um movimento ilusório
da alma.

Penso nelas e as vejo
como estão hoje e tudo faço
para que o tempo tenha passado
de leve sobre seus rostos.
Vejo-as sentadas, hirtas ou em repouso.
Vejo-as andando, indo à noite, ao mar.
Vejo-as vestidas suntuosamente
e mais suntuosamente
nuas.

Penso nessas mulheres e as vou
fabulando serenas e tão saciadas
de amor e sexo que nunca pensam
neste que nelas pensa há muito e sempre.
O que não importa, porque o que conta
é o que penso, o que invento delas,
de suas vidas hoje,
não para consolá-las, que nada sabem,
mas como um afago
em mim”

--------

“As vozes da sabedoria
são águas pesadas que despertam
sujeiras e chagas onde tocam.
                   Pois nos lembram
o que somos,
o que não queremos
ser,
o que não suportamos
ser,
o que nos desespera
de ser,
como o que foi dito há pouco
e mais verdades reveladoras
de que, por exemplo, somos apenas
sombras
e o mais que conseguimos
são mãos cheias de trabalho e vento
que passa”

--------

“Falta alguma coisa.
Falta desde sempre.

Desde que me sinto.
Mesmo nos Natais,

quando havia tudo
– árvore, presentes,

luzes, cantos, risos,
a família cálida –

de súbito abria-se,
no íntimo, a falta,

sem nome, sem rosto,
sem história, só

presença da ausência.

(...)

De tudo o que tive

e tenho, talvez
só haja possuído

mesmo esta falta,
que há de ficar

presente e pungindo
até que eu transponha

o último limiar,
quando então, por fim,

nada faltará”

--------

“Quanto mais o olhar acera,
recrudesce a noite vasta,
restando apenas à fera
as trevas em que se engasta

Choramos, era após era,
esta carência que pasta
entre escombros de quimera
tudo aquilo que não basta”

--------

“Não sei como tantas vastidões
couberam um dia nessa pequena
casca de osso
que o coveiro retira com as mãos nuas
e deposita na caixa de metal.

(...)

                                                        uma vez,
não sei como, cintilaram
                                                  galáxias
nessa pequena e frágil casca que conduzimos
entre outros inúteis objetos pessoais
deixados por aquele que partiu
para nenhum endereço”

--------

“Escuto o tempo fluindo,
fugindo. Sobe um soluço
da carne de tudo: móveis,
tecidos, metais. Que forte
é a morte!
                            E só a memória
vive, vive-nos, e soa
seus violinos de névoa
sob um frio sol que monta
num céu de assombro: o Perdido”

--------

“Um dia,
                        o fio
é um rio
por onde rápido
viajas.
                 As máscaras de uso
cotidiano
alinham-se às margens
                                          e pulverizam-se
ao teu passar.

Ao fim
te aguardas e te encontras.
Nunca inteiro: apenas
mínima parte
                         sem véus.

E te fitas
                 e te tocas
                                    um instante
                                                    um
                                                    quase sem tempo
                                                e já recuas
e já retornas
e as máscaras se recompõem
                                                e
                                     irônicas
te sorriem”

--------

“Tantos são os abandonados
e caminham ásperos no silêncio.
Há os que rezam, os que choram, os que se mantêm
                                                                impenetráveis.
E todos depois retornam às casas, aos pequenos
mitos auxiliares de cada dia
sob o indiferente azul do céu”



Trechos dos poemas Grácia, Descoberta, O avô, Mulheres, Adeuses, A falta, Soneto da triste fera, Exumação, Fuga, Busca e Dia de finados, presentes no livro Estação Infinita e outras estações (Bertrand Brasil, 2012), de Ruy Espinheira Filho.

Comentários

Ana Gilli disse…
Graça de poesia!

Talvez porque eu tenha acabado de voltar de uma viagem ao "interior" onde pude ver os que vieram antes do meu pai e os fizeram ser o que ele é, e por consequência quem eu sou, o trecho de "O Avô" me tocou muito.

Contemplei a "foto" de todos os avós nas palavras de Ruy Espinheira Filho. Doce, doce.

Beijo, meu lindo!

Agradecida por compartilhar conosco suas seleções
Emmanuel Mirdad disse…
"O Avô" é incrível!! Publiquei até um post com a íntegra do poema: http://elmirdad.blogspot.com.br/2013/08/o-avo-poema-de-ruy-espinheira-filho.html

Beijo, linda!

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d