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Olhos machucados dentro da noite, o meu livro de Ruy Espinheira Filho

Ruy Espinheira Filho na Flica 2012 
Foto: Vinícius Xavier

Ao ler o excepcional livro Estação Infinita e outras estações (Bertrand Brasil, 2012), a referencial e indispensável obra “completa” (produção até 2012, pois ele continua escrevendo novos poemas) do poeta baiano Ruy Espinheira Filho, pilulei diversos poemas e publiquei os fragmentos em seis partes neste blog. Não consegui resistir à tentação de imaginar que, se eu fosse um editor ou dono de uma editora, iria lançar um livro com minha seleção dos poemas mais “retados” desse ilustre baiano amigo e mestre. Pois bem, eis aqui Olhos machucados dentro da noite, o livro fictício de Ruy Espinheira Filho, contendo 62 poemas, os quais deixo abaixo, em formato de prosa, seus fragmentos pilulados. Caso alguma editora se interesse, basta procurar o poeta:


01) Grácia
“Por isso suave é a notícia de sua morte. Pois você fez o percurso sem ceder espaço aos logros da esperança; ao sonho, que nos desperta para que o vejamos apenas desfazer-se no ar. Você foi, entre nós, na sordidez de cada dia, a dura limpidez de quem nada buscou, pois tudo o que há é um gesto, um lampejo – e a noite cai”

02) Descoberta
“Só depois é que amamos a quem tanto amávamos; e o braço se estende, e a mão aperta dedos de ar. Só depois é que sabemos lidar com o que lidávamos. E meditamos sobre esta inútil descoberta enquanto, lentamente, da cumeeira carcomida desce uma poeira fina e nos sufoca”

03) O avô
“O avô descansa de quase um século. O rosto é sereno (não sei como pode mostrar essa calma após tanto tempo) e as mãos despediram todos os gestos. Descansa tão fundo e alto que é impossível despertá-lo, saber mesmo onde repousa. No entanto está em nós e nos impõe seu traços, cor de olhos, jeito de andar, sorrir, falar. E o mais difícil de cumprir: a insuavizável dignidade”

04) Mulheres
“Penso nelas com amor. Não como as amei outrora, mas como foram-se acomodando em mim ano após ano, umas com cálida harmonia, outras com certo incômodo, outras de modo fragmentário, e algumas tão sutilmente que talvez sejam apenas um movimento ilusório da alma”

05) Adeuses
“As vozes da sabedoria são águas pesadas que despertam sujeiras e chagas onde tocam. Pois nos lembram o que somos, o que não queremos ser, o que não suportamos ser, o que nos desespera de ser, como o que foi dito há pouco e mais verdades reveladoras de que, por exemplo, somos apenas sombras e o mais que conseguimos são mãos cheias de trabalho e vento que passa”

06) A falta
“De tudo o que tive e tenho, talvez só haja possuído mesmo esta falta, que há de ficar presente e pungindo até que eu transponha o último limiar, quanto então, por fim, nada faltará”

07) Depois
“Trago comigo os lugares onde estive. Não sou como os antigos que falavam em sacudir das sandálias a poeira dos caminhos. Não, guardo tudo, sempre guardo tudo, e especialmente guardarei das últimas caminhadas o seu espesso pó de iluminar a alma. Das viagens não regresso jamais”

08) Condição
“Sim, novamente escrevendo. Sem saber, como sempre, aonde estou indo, se é que estou indo a algum lugar. Às vezes me ocorre que escrever é exatamente isto: ofício de quem não sabe aonde ir. E, como não sabe, tateia na névoa à espera de encontrar alguma coisa que não só não sabe onde está como não sabe o que é e que talvez seja uma parte da alma que ficou perdida na travessia entre sombras ancestrais e a vida”

09) Encanto
“Acho que nunca te disse nada para não quebrar o encanto. Um encanto é delicado, parte-se com extrema facilidade. E depois sobrevém a tragédia do desencanto. Por isso as histórias param quando o beijo do Cavaleiro quebra o encanto da Bela. Porque, se continuassem, eles se casariam, teriam filhos, ficariam preocupados com as despesas, adiante se sentiriam tão entediados que passariam o resto da vida indiferentes um ao outro, vendo televisão”

10) Nada
“Dizem-nos que não haverá de ser nada para nos dar ânimo. Mas de outras vezes desanimamos seriamente porque nos parece que não haverá de ser nada. O jeito é aceitar estoicamente que, mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra, não haverá de ser nada”

11) Soneto da triste fera
“Quanto mais o olhar acera, recrudesce a noite vasta, restando apenas à fera as trevas em que se engasta. Choramos, era após era, esta carência que pasta entre escombros de quimera tudo aquilo que não basta”

12) Exumação
“Não sei como tantas vastidões couberam um dia nessa pequena casca de osso que o coveiro retira com as mãos nuas e deposita na caixa de metal. Uma vez, não sei como, cintilaram galáxias nessa pequena e frágil casca que conduzimos entre outros inúteis objetos pessoais deixados por aquele que partiu para nenhum endereço”

13) Fuga
“Escuto o tempo fluindo, fugindo. Sobe um soluço da carne de tudo: móveis, tecidos, metais. Que forte é a morte! E só a memória vive, vive-nos, e soa seus violinos de névoa sob um frio sol que monta num céu de assombro: o Perdido”

14) Busca
“Ao fim te aguardas e te encontras. Nunca inteiro: apenas ínfima parte sem véus. E te fitas e te tocas um instante, um quase sem tempo e já recuas e já retornas e as máscaras se recompõem e irônicas te sorriem”

15) Dia de finados
“Tantos são os abandonados e caminham ásperos no silêncio. Há os que rezam, os que choram, os que se mantêm impenetráveis. E todos depois retornam às casas, aos pequenos mitos auxiliares de cada dia sob o indiferente azul do céu”

16) O prisioneiro Graciliano Ramos no porão do Manaus
“Leves pancadas no corpo: são cascas de tangerina que lhe atiram do alto (onde estão os livres, os limpos, que se amam, dançam em romântica viagem pela costa do Brasil). Ele pensa em lançar as cascas nas ondas de urina; porém, aperta algumas nos dedos e aspira profundamente o acre odor luminoso. Isto não, jamais sujá-las com os dejetos humanos! Ao contrário: apagar a noite filha do homem na alma da tangerina. E mais: abolir até os sentimentos agudos de que há pouco se nutria consumindo-se, roaz”

17) Os objetos
“A caneta ainda escreve com a mesma tinta de um azul levemente melancólico. Na gaveta, dormindo sob cartas e poemas, o revólver aguarda”

18) No silêncio
“No silêncio repousa o seu cansaço. Tudo é imóvel na tarde, a não ser, numa réstia de sol, um vago pó girando sobre o silêncio maior das almas fechadas nos livros das estantes”

19) Retrato
“Como passaste, pai! Como passamos! Há tanto tempo já que tu partiste. Todo um mundo se foi – e vai, e vai... Olho o teu rosto na moldura e penso que tenho hoje idade de ser teu pai”

20) Afogados
“Nos vossos olhos, imóveis como chuva estagnada, há lições serenas que vêm-me umedecer a alma. Mas que só compreenderei quando for sábio de ver além do espesso do mundo. Quando, enfim, chegar ao alto do meu próprio voo profundo”

21) Naro
“Alguém, no silêncio morno, falou em destino. Fiquei pensando naquela pedra com uma missão mortal determinada desde o princípio dos tempos. Aquela pedra, ali, vulgar e triste como a ideia de destino”

Ruy Espinheira Filho por Ricardo Prado

22) Anotações num dia de aniversário
O que vem de ti ainda é o murmúrio que move o sol e as outras estrelas, embora há pouco alguém olhando uma fotografia recente tenha dito que a tua pele já não é a mesma

23) Soneto do sábio ócio
“Não mudarei em nada a minha vida para alcançar outra melhor na morte. Dou-me aos azares, sim, arrisco a sorte, mas aqui, neste mundo, nesta lida em que me sinto, sou. Vida, se houver, depois da morte, valeria a pena sendo como esta vida: densa, plena de ganhos, perdas, sonhos – e mulher”

24) Equívoco
“Amor pressente amor e não o encontra. Encontra-se a si mesmo e é dor somada. Mas é preciso achar e ele prossegue. Fareja, como um cão, mas não há presa. Desconfia um perfume e a brisa o leva”

25) As meninas
“Outra é a que há muito se foi para longe e dói num sulco de afeto incicatrizável”

26) O pai
“Aqui estou e não creio porque em mim tuas palavras, tuas viagens a cavalo através das matas úmidas, o árduo trabalho pela justiça pago tantas vezes com perus, requeijões, frutas, hortaliças ou não pago jamais; a cadela Baiana gemendo baixinho enquanto lhe costuravas o ventre perfurado por uma estaca de cerca, a dignidade insuavizável como a do teu pai, a compreensão e o generoso amor. Caminho, novamente caminho, estás comigo como quando pousavas a mão no meu ombro, a ternura contida mas espessa”

27) Antes de tudo
“Antes de tudo, não é nada disso. Não te amo: é um amor de outrora que te ama como se diante de um espelho. Talvez não me entendas. Mas isto não importa: ainda que me entendesses, eu sofreria igual”

28) Poema de dezembro
“Em dezembro morremos todo ano. E conduzimos nosso desamparo ao espelho. Rosto, tronco, membros: onde quem vos habitou?”

29) Lendo Plutarco
“Vangloriava-se de estar a salvo de um mal: perder um filho. Tornara-se imune a essa dor de modo simples: não tendo filhos. Sábio homem, esse, cujo medo de perder um filho, o fez perder todos os filhos”

30) Despedidas
“Despedimo-nos do amigo no azul da tarde. E, uns nos outros, fitamos os rostos que o tempo moldou sobre os rostos suaves, aqueles que nos fitam da memória”

31) Giuseppe
“Desse avô, nada nos chegou de gesto, palavra, legado de posses (estas últimas levadas por incertos cálculos e certos parentes). Mas nos veio este mistério amoroso que comove como cantiga longínqua, inaudível quase, incompleta, e que, no entanto, escutamos, e em nós recolhemos. Desse avô que se foi antes de nossas vidas, uma herança cintila nos ossos, no sonho, e é doce no poço do coração”

32) Moringas
“Na calma das moringas não se perde o rio. Na água em repouso ainda sonha o frio da alma que flui, espuma, ou voa (quando se lança no vazio)”

33) Noturno
“Fecho os olhos. Quero me apagar na noite, ser a noite, esse grande silêncio lá fora, onde espero que o mundo não esteja mais”

34) Enquanto
“Um dia recordarei esta hora, estas palavras que se escrevem leves como a brisa, e com ela passam para o jardim em que lembra a minha alma enquanto tarda o tempo de esquecer”

35) A música recusada
“Vejo-o ali, descalço na areia, ouvindo o ar em valsa lenta. Está ali, e em seu rosto a sombra da ruga que me aguarda no espelho. Mas não sou eu. É um que conhece a estrada por onde passam lavadeiras. Não sou eu, que não saberia ser tão leve nem chamar pelo nome o perdigueiro que se distancia, farejante. É outro com sua ciência de árvores, murmúrios entre seixos, histórias à luz do candeeiro, tudo o que perfaz uma ração de mitos, anátemas, gorjeios. Para dizê-lo todos os alfabetos e nenhum”

36) Do amor
“Todo amor está perdido ao nascer. Em vão nossos corpos nos absorvem, em vão nos lançamos aos nossos abismos recíprocos: o amor aí não está. Em nós ecoa o seu chamado e nos submete. Mas apenas chamado: ao fim há outro chamado, e outro, e outro, e na origem do outro que sempre vem depois (e portanto nunca chega) está o amor, o que é o mesmo que não estar”

37) Fragmentos de uma Viagem com Lemuel Gulliver
“Quando as vontades não se eximem do rei, quando as cabeças (de)pendem de um salto bambo na corda, melhor é ter pronto o nosso lado mais claune, porquanto menos importa a lei que um polegar de rei”

38) Aqui, antes da noite
“Sei: com o tempo só os mortos sobrevivem. Como você, que passa distraída entre as árvores e não me vê, distante, noutro plano; e você que me olha com uma infância pungente e me fala com voz de lã. Mas não me diz nada do que eu precisava ouvir, enquanto eu nada lhe digo do que precisava dizer, como afinal sempre acontece e logo é muito tarde”

39) Agosto, ocaso
“É agosto e ocaso. Logo mais sem acender as lâmpadas, lembrarei meus avós brasileiros, meus avós italianos, imigrantes de 1914, pensarei que tiveram avós e avós e avós e que de mim virão (possivelmente) netos e netos e netos e me sentirei perdido entre uma borda e outra do Universo”

40) Flor
“Impossível vencer os sonhos contrariados. Em vão tentamos sepultá-los sob a urgência cotidiana. Em vão nos esquivamos, apóstatas. Em vão os trocamos por esta outra vida. Pois eles não sufocam, não se distanciam, não cessam de sonhar, de se sonhar em nós”

41) Passionária
“Esta tarde de súbito na chuva curvei-me sobre mim, sobre o que chamava amor e eis que era sua falta e por isso mesmo ainda mais amor”

42) O luar, o rumor
“Ah o rumor do coração. Ah essa lua. E quando tentamos disfarçar, como brancas pedras de certeza ou neutra superfície, eis que uma voz pergunta (como o fantasma de Platão entre as páginas de Yeats): ‘What then?’. E daí desfaz-se a trapaça. E retornamos à vida. Sob o luar da memória. No rumor do coração”

43) Visita do poeta Carlos Anísio Melhor
“A vida transcorre com uma lenta doçura, assombrada de poemas que iluminam como luas o âmago sujo dos bares (cárceres, porões, conveses, nossos ermos, nossos lares)”

44) A poetisa
“Rouca, por toda parte os seus tormentos, leva em versos de abismos e violentos ventos. Áspera voz acende a tarde, ou a noite, e a calma cessa, e a alma arde a esse fulgor de desolado canto, a essa palavra tanto espanto e pranto. Pela cidade tece sua história, num recanto intranquilo da memória onde visito – angústia e alegria – a esplêndida demência da poesia”

45) Espumas
“No papel em branco, letras, frases, versos traças na procura de luz que disperse a nuvem obscura em que vais a esmo, órfão de ti mesmo. No papel em branco, a busca infinita (um tempo de vida) que talvez não leve senão à invenção de mais outras névoas sobre as névoas fundas que jazem submersas”

Ruy Espinheira Filho por Mário Espinheira

46) Sobre o penhasco
“Subi, então, no penhasco mais alto, negro monstro nascido de agonias imemoriais. E lá fiquei, batido pelo vento, até que a noite veio. E como a noite não era senão apenas noite, deu-me vontade de chorar. E lentamente comecei a voltar para casa. Depois, já no meu quarto, descobri que ainda continuava sobre o penhasco. Ainda esperava que alguma coisa chegasse de muito longe, e tinha os olhos cravados em pesadas nuvens do Oeste. Ermo e expectante”

47) Vinte anos
“Nestes vinte anos, como em todo meu tempo anterior, estiveste comigo – compreensão, coragem, segurança, rumo – numa presença poderosa que poucos conhecem e se chama caráter. Ao fim destes vinte anos, escrevo estas palavras e me envergonho de não saber dizer melhor dos acordes que soam em nós que te conhecemos. Mas, se tanto não sei, não sabemos, sabemos o que importa: que somos especiais porque vivemos o tempo generoso da tua voz, do teu gesto, e continuamos a viver esse tempo, confortados por tua densa e cálida memória, meu pai”

48) A morte e o bom-dia
“Passei bem perto da Morte, mas sequer lhe dei bom-dia. Ela tentou me falar, porém fiz que não a via. O que me diria a Morte (depois me perguntaria) se eu me houvesse disposto a ouvi-la naquele dia? Mais prudente não saber... Assim creio que será sempre o nosso dia a dia: ela, tentando falar-me; eu, negando-lhe o bom-dia”

49) Espelho
“Estarei oficialmente mais velho dentro de poucos dias. Consulto o espelho, que apenas me fita criticamente. Continuo a interrogar o espelho. Ele agora tem um ar irônico, e o encaro da mesma maneira. Com um pouco de sorte, poderá se manter assim por algum tempo ainda, apenas irônico, exibindo não mais que algumas rugas e manchas, a barba branca, o cabelo, em parte, nas trevas – ou ao menos nas sombras – de uma era extinta”

50) Visita
“Sempre quis fazer esta visita todas as vezes que estive na cidade, mas havia a pressa, os compromissos, os outros amigos. Assim é o Tempo, sabemos, sempre escasso. O Tempo que certa vez não existiu. Longamente não existiu. Era só uma palavra (em alguns casos, por certo, advertência) que não ouvíamos enquanto brincávamos ao sol, ou noite adentro. O Tempo: nada nos preparou para ele, veio silencioso como uma nuvem, uma estação mais fria, nevoenta, por onde vagamos temerosos do horizonte. Mas hoje, enfim, aqui estou”

51) Outro aniversário
“Sessenta e cinco vezes a volta ao Sol e nenhuma revelação, nenhum sentido, nada além do cultivo de uma sombra cada vez mais longa no ouro agonizante da tarde”

52) Insônia
“Anoto apenas estas prosas melancólicas, estes fragmentos doentios de quem não mereceu adormecer o sono dos justos ou, melhor ainda, o sono dos canalhas, que são estes, sem dúvida, os que dormem mais placidamente, confortáveis em suas alminhas sem mácula de remorsos (que o canalha propriamente é puro em sua natureza; ou assim, ou não passará de um falso canalha, pobre ovelha desgarrada de que os canalhas riem com todas as suas hienas)”

53) Modos
“Primeiro, foi daquela maneira; depois, de outro jeito; agora assim. E amanhã talvez não seja de modo algum”

54) Antielegia de agosto
“O mundo não pesava mais que uma mão de criança em nossos ombros. E as almas eram confiantes e fitavam, calmas, o horizonte futuro: amplidão de esperanças. O sonho se cumpria. Era só caminhar na claridade e semear a terra e ter vontade de amanhecer no azul que amanhecia”

55) Frio
“Raptaram uma moça na Cinelândia. Um político inglês considera obscena escultura que representa um casal de namorados. Outro político sugere que a escultura seja colocada num parque. Como falou Zaratustra, para os puros tudo é puro, para os porcos tudo é porco”

56) Arco-íris
“Continua amando-a mesmo através da tempestade de outros amores, quando ela emerge do caos e às vezes fica, longamente, numa luz que nem de leve adormece. E assim é: como a amou há muito tempo. Como agora e certamente, depois e depois e depois”

Ruy Espinheira Filho na Flica 2012,
mesa com Antonio Cicero,
mediada por Jackson Costa
Foto: Vinícius Xavier

57) Dentro da noite
“E o jornalista continuou em seus bares e botequins. Já começava a haver aproximação maior entre nós, à luz das cervejas, quando os militares saíram dos quartéis e afundaram o país numa ditadura de mais de vinte anos, o que fez emergir dos esgotos da cidade, desde o primeiro instante, as ratazanas da delação. E muitos se foram embora, como eu. Voltei após longo tempo e lá estava ele, no primeiro bar em que entrei. Falei do meu último encontro com o poeta seu amigo já há muito morto, e lá ficamos, bebendo melancolicamente, com os olhos machucados dentro da noite”

58) Conversa com Francisco Otaviano
“Não me limitei a apenas passar pela vida (mesmo porque ela não depende tanto de nós quanto arrogantemente supomos) em branca nuvem, como jamais me senti espectro. Às vezes até sonho em vir a ser espectro, no devido tempo, para visitar certas pessoas à meia-noite”

59) A casa dos nove pinheiros
“A casa permanece jovem, embora meu pai a tenha construído em meados dos anos 50. Todos os que a habitaram desde então trataram-na com desvelo, inclusive a senhora que um dia subiu no grande reservatório de água para se afogar”

60) Passarinhos
“Sim, os passarinhos sempre despertaram todas as manhãs do mundo. E do Tempo, embora alguns possam achar que houve era em que os passarinhos ainda não existiam e por isso não poderiam despertar as manhãs. Quanto a mim, acho que sem passarinhos não há manhã”

61) Um de nós
“Alguém fala em seu nome e me leva a ruas antigas que muitos poderão achar que são as mesmas de hoje, pois conservam suas placas, mas eu sei que eram outras especialmente insalubres por causa do mau cheiro do fascismo entranhado em tudo. Então por elas caminhávamos com a alma obscurecida, temendo que algum lampejo de pensamento ou sonho nos denunciasse”

62) 70 anos
“Chego como a um fim de tarde no desejo de que permaneça como estação infinita. Prêmio merecido após a viagem: que tudo permaneça como agora, a vida que me cerca e a paisagem de onde vim longa e trabalhosamente. Quando manifesto meu desejo maior e mais sábio, chegou a hora de cessar o efêmero”




Todos esses poemas estão presentes no fundamental livro Estação Infinita e outras estações (Bertrand Brasil, 2012), a referencial e indispensável obra “completa” (produção até 2012, pois ele continua escrevendo novos poemas) do poeta baiano Ruy Espinheira Filho.

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