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Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, de David Foster Wallace — Parte 04

David Foster Wallace interferido por Mirdad


"Ser um turista massificado, para mim, é se tornar um puro americano contempo-râneo: alheio, ignorante, ávido por algo que nunca poderá ter, frustrado de um modo que nunca poderá admitir. É macular, através de pura ontologia, a própria imaculabilidade que se foi experimentar. É se impor sobre lugares que, em todas as formas não econômicas, seriam melhores e mais verdadeiros sem a sua presença. É confrontar, em filas e engarrafamentos, transação após transação, uma dimensão de si mesmo tão inescapável quanto dolorosa: na condição de turista você se torna economicamente significativo mas existencialmente detestável, um inseto sobre uma coisa morta"


"Um detalhe tão óbvio que a maioria das receitas nem se preocupa em mencionar é que as lagostas precisam estar vivas ao serem colocadas no tacho. Isso faz parte do apelo contemporâneo da lagosta – é o alimento mais fresco que existe (...) Chegam vivas dentro das armadilhas, são colocadas em recipientes com água do mar e podem (...) sobreviver até o instante em que são fervidas (...) Então aqui vai uma pergunta que se torna praticamente inevitável diante da Maior Panela Para Lagostas do Mundo e pode vir à tona em cozinhas espalhadas por todos os Estados Unidos: é certo ferver viva uma criatura senciente para o nosso mero prazer gustativo?"


"Não existe só o problema de que as lagostas são fervidas vivas, mas também o de que quem faz isso é você – ou pelo menos isso é feito especificamente para você, in loco (...) Pelo menos comer lagostas não torna ninguém cúmplice do sistema corporativo de fazendas de confinamento que produz a maior parte da carne de gado, porco e frango. Por conta, no mínimo, do modo como são comercializadas e embaladas, comemos essas carnes sem ter de pensar que um dia já foram criaturas sencientes e dotadas de consciência às quais foram feitas coisas horríveis"


"Quando é despejada do recipiente para dentro do tacho fumegante, às vezes a lagosta tenta se segurar nas bordas do recipiente ou até mesmo enganchar as garras na beira do tacho como uma pessoa dependurada de um telhado, tentando não cair. Pior ainda é quando a lagosta fica imersa por completo. Mesmo que o sujeito tampe o tacho e saia de perto, normalmente é possível ouvir a tampa chacoalhando e rangendo enquanto a lagosta tenta empurrá-la. Ou escutar as garras da criatura raspando o interior do tacho enquanto se debate. Em outras palavras, a lagosta apresenta um comportamento muito parecido com o que eu ou você apresentaríamos se fôssemos atirados em água fervente"


"É possível que as gerações futuras considerem as práticas de agronegócio e alimentares contemporâneas da mesma maneira como hoje enxergamos os espetáculos de Nero ou os experimentos de Mengele? (...) Eu creio que os animais são moralmente menos importantes que os seres humanos; e quando se trata de defender essa crença, ainda que para mim mesmo, preciso reconhecer que (a) tenho um óbvio interesse egoísta nessa crença, pois gosto de comer certos tipos de animais e quero ser capaz de continuar fazendo isso, e (b) não consegui elaborar nenhum tipo de sistema ético pessoal dentro do qual essa crença se torne verdadeiramente justificável em vez de ser apenas uma conveniência egoísta"


"Proponho a vocês que esse é o valor real e sério que precisa ser transmitido numa educação em ciências humanas: Como ter uma vida adulta confortável, próspera e respeitável sem estar morto ou inconsciente, sem ser escravo da própria cabeça e da configuração padrão natural que nos condena a estar singular, completa e imperialmente sozinhos dia após dia"


"O suposto 'mundo real' nunca desencorajará vocês de operarem nas configurações padrão, porque o suposto 'mundo real' dos homens, do dinheiro e do poder avança tranquilamente movido pelo medo, pelo desprezo, pela frustração, pela ânsia e pela veneração do ego. Nossa cultura atual canalizou essas forças de modo a produzir doses extraordinárias de riqueza, conforto e liberdade pessoal. A liberdade de sermos senhores de reinos minúsculos, do tamanho dos nossos crânios, sozinhos dentro de toda a criação"


"O tipo realmente importante de liberdade requer atenção, consciência, disciplina, esforço e a capacidade de se importar genuinamente com os outros e de se sacrificar por eles inúmeras vezes, todos os dias, numa miríade de formas corriqueiras e pouco excitantes. Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ter aprendido a pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a 'corrida de ratos' – a sensação permanente e corrosiva de ter possuído e perdido alguma coisa infinita"



Trechos presentes no livro de ensaios "Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo" (Companhia das Letras, 2012), de David Foster Wallace.

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