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O herói está de folga, de Dênisson Padilha Filho

Dênisson Padilha Filho
Foto: Renata Rocha | Arte: Mirdad


"Acredito que ela só existiu e sumiu da minha vida pra me ambientar à sucessão de golpes que é a nossa passagem pelo mundo"


"Entre ouvir vozes e chorar baixinho e sem testemunhas; entre contar pra esquecer e esquecer calando, foi seguindo na velha e incessante fuga que todo homem pratica somente pelo fato hediondo e imutável de existir, de viver nesse mundo e amargar, nesse mundo, a sensação inconsolável e irrefutável de um exílio sem fim. Continuou pelos caminhos, com sua velha dor nas costas, sem jamais saber se aquilo era da pisada do cavalo xotão ou se era do peso das mortes. Nunca soube"


"Noite seguinte, quis ter paz, mas não teve; bebeu sua pinga e chorou baixinho, feito um réptil, escondido do mundo (...) Dentro da cabeça só choros e o tinir das trelas e cangas dos bois, numa agonia ladeira abaixo, e a família pedindo valência a tudo que era santo. Era só o que escutava, entre um e outro gole de pinga, enquanto buscava não constar na terra, se escondendo. As espáduas doloridas, o lombo moído de tanto peso, suas dezesseis mortes. Choro de criança, gemedeiras, urros; e ele ali, bem quietinho num recanto do mundo, sozinho na noite do meio dos matos, um assassino imperdoável, um desgraçado que só estava ainda sobre a terra porque aprendera a matar e trazer lágrimas a meio mundo de famílias, como aquela que acabara de matar"


"Há quem diga que o homem mais temível e de reação mais improvável é aquele cujos olhos nunca se veem"


"A mesquinhez é incurável"


"– Padre, eu pequei.
– Imagino que sim. Se não, não viria.
– É... sabe? Mas não foi assim, tão simples.
– Também imagino que não, os pecados nunca são simples.
(...)
– Preciso de conforto, padre.
– Vá em paz.
– E eu rezo o quê?
– As orações são as mesmas; a humanidade já conhece. Reze as que preferir"


"O ônibus começa a andar, e você percebe que a mulher gestante é ela, Ava. Vestida de desgosto, trazendo no bucho o apocalipse. Sua pele está de uma cor cinzenta e pelas frestas entre os passageiros em pé, você vê um relance dos olhos apagados (...) Ava foi engolida pela cidade grande, e toda sua luz se foi (...) não é mais seu sonho, ela é a marca mais legítima de que a civilização se condenou"



Trechos presentes no livro de contos "O herói está de folga" (Kalango, 2014), de Dênisson Padilha Filho.

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