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As aventuras de Nicolau & Ricardo: detetives, de Mayrant Gallo

Mayrant Gallo
Foto: Vinícius Xavier | Arte: Mirdad


"Nicolau e Ricardo foram chamados para resolver um caso numa cidade do interior – Póci. A cidade era tão pequena que não havia delegacia. Quer dizer, a delegacia funcionava num anexo da prefeitura, também residência do prefeito.
'E onde está o delegado?', perguntou Nicolau.
'Sou eu mesmo', respondeu o prefeito.
Nicolau e Ricardo se entreolharam.
'E o corpo policial? O senhor tem um corpo policial, não tem?', perguntou Ricardo.
'Tenho sim, minha guarda pessoal, formada pelos meus três filhos.'
Novamente os olhares dos detetives se encontram.
'E, afinal, quem morreu?', suspirou Nicolau.
'Minha mulher.'"


"Culto o bastante para se exibir sem se fazer notar, mas insensato ao ponto de prescindir de alimentar relações que sabia consistentes e desinteressadas, mergulhava em livros e filmes por um motivo bem simples e nada sutil: para se afastar das pessoas.
Por traição, ressentimento ou despeito, esperava ser posto para fora de suas vidas, mais dia menos dia. E era por isso, aliás, que sempre perpetrava uma citação de efeito, a cada fala de sua autoria ou alheia: para despertar em volta, a um só tempo, ódio e inveja.
Assim, não era raro que, por este ou aquele motivo, fosse o centro das atenções, mesmo em ausência. Também o vetor das críticas, que ele próprio fazia questão de provocar, e o sangue da chacota, a correr forte e abundante"


"Nicolau e Ricardo querem férias, mas o crime não para. Nicolau e Ricardo estão cansados, mas os criminosos tiram energia do sol e se renovam como insetos. Nicolau e Ricardo gostariam de passar três semanas na praia vivendo só de vento e espuma, mas os criminosos preferem prensar cédulas e contar papelotes. Nicolau e Ricardo gostariam de ir para a cama todas as noites à mesma hora e amar suas mulheres, mas os criminosos passam as noites em claro e, firmes como rochas, volúveis como água, só raramente cedem aos encantos de um ventre. Nicolau e Ricardo acham que, no fim das contas, pesados os extremos, os criminosos levam vantagem"


"Um domingo vazio, sem movimento. O sol, por entre os edifícios, projeta sombras contra ruas e becos. Não há sentido no espaço, nem no tempo, pois não há pessoas à vista; só artérias de sombras e luz, reflexos que, partindo das janelas, cortam o vazio, cruzam o ar e repousam no vácuo daquela tarde sem propósito"


" – Estou piorando, me tornando um homem pior...E pensava que seria o contrário.
– Não, não é. A vida é um escultor grotesco, cujo único talento é fazer chocar"


"Nicolau e Ricardo entram num boteco da Barra, pedem uma bebida e tentam relaxar. Não estão para muita conversa. Tiveram um dia difícil, cheio de interrogatórios inúteis, de pistas falsas, de testemunhas dissimuladas, de suspeitos sarcásticos. Meio chutado, embora o tom grave, quase filosófico, Nicolau diz:
'Há no fundo de toda mulher o desejo repulsivo de bancar a prostituta'.
'Mesmo sua mãe, sua mulher, suas filhas?', Ricardo brinca.
Nicolau se levanta bruscamente, não diz uma palavra sequer e, sem olhar o amigo, sai. São os nervos. Os nervos"


"– É, um método. Um método que os permitia trepar sem compromisso, sem nem mesmo namorar, que os coloque livremente uns nos braços dos outros e ainda chame a atenção de seus pais, que obviamente não os condenam.
– Claro que você não tem filhos – Nicolau retrucou.
– Falo sério. Eles estão enganando a todos nós. Não há estuprador. Não há estupro. Não há vítimas. Só desejos saciados, sem compromissos, nem discórdias familiares, nem troca de sentimentos"


"Caídos e impotentes na rua escura e deserta – e Ricardo fora particularmente azarado, pois na queda perdera a pistola –, esperaram pelo vulto e pelo tiro de misericórdia... Uma cusparada no rosto foi tudo o que receberam. E as palavras, que o pistoleiro expeliu como se também cuspisse:
'Minha filha merecia mais respeito!'
E se foi.
Semanas depois, já restabelecidos e de volta ao trabalho, Nicolau e Ricardo se perguntavam a quem o atirador se referia: se às 87 mulheres assassinadas no Estado ao longo de um ano ou às 413 estupradas que tiveram a coragem de procurar a polícia.
'Qual seria a sua filha?'"


"Na BR 324, Nicolau e Ricardo seguem a pista de um escroque. Param num restaurante à beira da estrada e bebem, enquanto o observam. Mas não observam o suficiente, pois não veem quando o bandido foge no carro deles"


"É a polícia que estabelece se é assassinato ou suicídio, e para ele, naquele domingo, foi um suicídio.
Já não se veem os assassinatos, que fugiram correndo"



Presentes no livro de contos "As aventuras de Nicolau & Ricardo: detetives" (Penalux, 2014), de Mayrant Gallo, páginas 22, 49, 25, 64, 97-98, 37, 84, 45-46, 53 e 65, respectivamente.

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