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Nove passagens de Raimundo Carrero no livro O senhor agora vai mudar de corpo

Raimundo Carrero (foto daqui)


"Começa a decidir que tudo isto, toda esta imensa contorção do Homem deve ser colocada no papel, escrita, para desvendar seu mundo interior, sua completa derrota, sua frágil, inquieta e tenebrosa condição humana. Está na hora de se despojar de todas as vaidades e honrarias, das manifestações exibicionistas de vitória, e de sucumbir diante do inevitável, do aterrador, do horroroso, misturando-se ao pó inquestionável da vida, das cinzas que são desmanchadas pelo vento."


"(...) A manhã do Recife, lerda e lenta, é a manhã do Recife, apesar do sol quente. Permanece na ambulância, preocupado com o anúncio da dor feito pela sirene... O que não gosta deste mundo é da proclamação da dor, como se faz em todos os lugares e por qualquer motivo. Lamenta o excesso de exposição. Quando estará em condições de ver novamente os jardins, as ruas quebradas, as praças desta cidade? Quando menino, gostava de andar nas calçadas recolhendo frutos. Às vezes os comia, lavando-os nas torneiras dos jardins... Agora, é apenas um traste velho interrompendo o trânsito da cidade com o corpo falido numa ambulância barulhenta."


"Compreende, enfim, que a arte se compõe desses elementos que resultam na proclamação da beleza – e, portanto, da vida, da impenetrável condição humana –, sem nenhum compromisso com a ética ou com a moral, passando apenas e exclusivamente pelo gosto, pela sutileza do gosto. Volta a se sentar e tem a vertiginosa sensação de que a arte penetrara com tanto vigor no seu sangue, com tanta firmeza e deslumbre, que a morte e a rejeição do mundo são, na verdade, apenas obras de arte, cujo artista é a Divindade."


"Neste instante, ele ouve o som metálico do frevo e a luz do sol multiplicando-se em muitas bolas de fogo, queimando as árvores e incendiando o céu empestado de fuligem e poluição do Recife, agora transformado num mundo de ansiedade e espera, algo que se aproxima muito do arco de desolação que se estende no horizonte de prédios e gigantes que ocupam a paisagem da cidade. Um mundo de ferro, cimento e pedra."


"(...) quanto mais se esforça, mais fica diante de si mesmo, jogo de espelhos que se agita nas entranhas, as imagens múltiplas de homens, bichos e monstros, até chegar em casa para o banho, para o jantar e para o sono, se é possível convidar os sinos do sono para acompanhá-lo. Para embalá-lo na noite medonha. Não tem sonhos nem pesadelos, as sombras multiplicadas da madrugada, a madrugada que é o bordado das sombras, e, dentro das sombras, os pensamentos, o sabor no segredo da fruta. Ele conhece a velha sentença embalando o corpo antigo, as sombras bordadas formam o tecido da noite e vão encontrá-lo já abrindo os olhos para ver as luzes azuis da manhã que se aproxima. Ele sabe, sabe e conhece muito bem, desde criança, que a luz azul é começo da manhã. Toda manhã começa azul para se tornar amarela, quando é completa e domina o mundo."


"– É que tive uma ideia estúpida.
– Estúpida? E por que está acreditando nela?
– Não estou acreditando... estou com medo...
– Então me fale dessa estupidez...
– Pensei que a vida fosse um milagre, como se diz por aí, e em sendo um milagre... é uma ofensa a gente olhá-la... Não podemos testemunhar um milagre porque não merecemos...
– Que absurdo é este, rapaz? Você não apenas sofreu um AVC, você ficou maluco.
– E quem é maluco pode escrever?"


"(...) O pobre homem sofria e estava morrendo, mas a medicina não podia ajudá-lo. Ninguém podia ajudá-lo... e a família se divertia nos cafés e nos teatros, gargalhando e amando. De que forma aquilo podia significar ‘a vida’? A vida do personagem que gemia de dor e de desesperança... A mesma desesperança que o atingia agora, o Escritor devastado pela angústia de não poder reagir. Jamais reagiria. E agora as pessoas nem mesmo queriam acreditar nele..."


"– O senhor quer ler o meu romance?
O homem era alto, falava rouco e pausadamente:
– Leio sim, deixe o original comigo. Se eu não gostar, não significa que não preste, significa apenas que eu não gostei.
Isto ele não sabia naquele instante: começava ali uma amizade de quarenta anos, com muitos estudos, análises, leituras. E conversas acaloradas, exaustivas, demoradas. Cheias de humor e ironia. O Escritor estava certo de que enfim encontrara o caminho do nariz. Mas com Ariano aprendeu que a literatura se faz com metáforas e que a literatura brasileira pode ser erudita, requintada, a partir das bases populares. O folclore seria e é a base da nossa cultura mas sem ser registro documental ou cópia. O folclore é o símbolo da condição humana."


"(...) Desejava preparar uma marcha dos desesperados sobre o Recife, numa imagem cinematográfica e poética, própria de um sonhador, de um revolucionário impedido de sonhar. De um homem arrancado de sua vida tradicional, conservadora e pacífica. (...) – Vai ser um grande espetáculo, camarada. Quando a cidade acordar verá os famintos, os miseráveis, os desesperados saindo da lama do rio Capibaribe, levantando-se em andrajos, descalços e despenteados para ocupar a cidade. Sairemos sem armas, sem flores, sem cânticos e sem marcha, a revolução da dor, sem sangue e sem gemido. Ocuparemos os bancos, as lojas, os quartéis e as repartições públicas. Tomaremos os lugares dos chefes, dos soldados, dos administradores, e entregaremos todos os cargos aos famintos, às putas, aos loucos, a toda a pária social. (...) A partir desse dia, não se conhecerá mais a força desmesurada de depósitos bancários, empréstimos, juros, inflação, e só praticaremos o único gesto político de que o homem é merecedor – viver."



Presentes no livro "O senhor agora vai mudar de corpo" (Record, 2015), de Raimundo Carrero, páginas 65-66, 27-28, 65, 16-17, 23, 57, 35, 73 e 99-100, respectivamente.

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