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Nove passagens de Ruy Espinheira Filho no livro Os milagres de Madame Jurema & outras crônicas

Ruy Espinheira Filho na Flica 2017 - Foto: Paolo Paes


“A noite. O homem da cidade não a conhece. O que ele chama de noite é uma falsificação. Ao fim da tarde, num gesto automático, ele passa a mão no interruptor e acende outro dia. Mas é preciso conhecer a noite, a verdadeira – como a daqui, por exemplo, que, à semelhança da dos versos de Lorca, se tornou íntima como uma pequena praça. Onde todos, sem exceção, têm lugar ao luar.”

“(...) Sou eu que escrevo, e não sei escrever senão assim, pelo menos agora – com os dedos sujos do pó de muitos escombros.”

“(...) Ele a fita por um instante, em silêncio. Depois, lentamente, chama o garçom, paga a conta e sai com a mulher. Daqui a pouco, num quarto sórdido, talvez no fim de uma rangente e encardida escada, eles se amarão sem amor. Em seguida, ainda mais cansados, adormecerão. Os olhos dela, quando amanhecer, não refletirão nenhum dia. Permanecerão noturnos. E ele se afastará como que foge, amargo, buscando a si mesmo nas ruas implacáveis de luz.”

“Hoje, tendo visto dois passarinhos que brincavam entre as folhas de uma mangueira, veio-me uma grande vontade de receber notícias suas, de saber onde e como você está. E será que valeria a pena? Tenho medo de que você me apareça como uma pessoa qualquer – talvez transformada numa senhora gorda que vive gritando com os filhos –, sem nada mais da menina que me surpreendia e encantava. (...) Mas, pensando bem, eu não preciso de notícias. Porque você – o real de você – é o que está em mim. E em mim você permanece a mesma, alada e mansa, ave morena, suave e intemporal. Entre passarinhos – passarinho de olhos estranhamente humanos, grandes e desamparados.”

“(...) Os doidos mansos são um povo especial e formam uma humanidade pacata e inocente. Muito dificilmente reagem às provocações e agressões das chamadas pessoas normais. Deles deveria ser a direção do mundo, mas as pessoas normais, em maior número, acabaram tomando conta de tudo – e o resultado é isso que vocês estão vendo...”

“De súbito recebo um tapa no rosto: foi uma folha da amendoeira, arrancada pelo vento. A cidade desapareceu, como se tragada pelas ondas. Que são cada vez maiores e mais fortes, sopradas pelo Nordeste violento. Chega uma jangada de vela suja e rota. Com a ajuda de três meninos, o jangadeiro põe rolos de madeira sob a embarcação, empurrando-a praia acima. O vento sopra com ímpeto crescente – e começa a fazer frio. Ah, o vento! Por várias vezes tentou arrancar-me das mãos o papel em que rabisco estas notas. Ou muito me engano – ou estamos diante de uma autêntica vocação de crítico literário...”

“(...) Certa vez, quando menino, deitei-me no chão e fiquei a olhar o céu. O azul me penetrou como a própria revelação da Beleza, e se espalhou dentro de mim, e circulou em meu sangue – e eu era aquele azul e tive vontade de chorar. Assim, quando eu morrer vocês estarão sepultando também aquele azul. Que nem ao menos será pó. Como uma luz – composta de si mesma, de si mesma originada, sendo apenas seu próprio brilho, se apaga. Sem juízo final.”

“Esvaziados os pratos, onde há pouco fumegava uma apimentada moqueca de lagosta, sentamo-nos sob a amendoeira e olhamos o mar. Ao longe, na linha do horizonte, com seus edifícios brancos, a cidade se assemelha a um cemitério.”

“(...) Com um gesto lento, sonolento, passo as costas da mão direita pela testa úmida. Fico pensando que até o amor se torna impossível num dia como este – mas, olhando através da janela, vejo que estou enganado: do outro lado da rua, de mãos dadas, passeia um jovem casal. Lá vão eles, indiferentes ao mormaço, namorando. E de súbito me recordo que, em certas regiões deste louco país, a palavra mormaço também significa namoro. Num gesto heroico, abro o dicionário e fico sabendo que o termo namoro é ainda sinônimo de azeite, camote, cera, derriço, grude, paleio, pé-de-alferes, sumbaré, tribofe – e outras enormidades!"




Presentes no livro de crônicas Os milagres de Madame Jurema & outras crônicas (Caramurê, 2017), de Ruy Espinheira Filho, páginas 16, 48, 62, 25-26, 13, 12, 75, 10 e 40-41, respectivamente.

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