Pular para o conteúdo principal

Vamos ouvir: Dois Tempos, da Khrystal

Dois Tempos (2012) - Khrystal




Não consegue visualizar o player? Ouça aqui

Release do CD por Tárik de Souza, disponível no Myspace da cantora:


"
O BRILHO SEM AMARRAS DE KHRYSTAL
Tárik de Souza ::Set de 2012

“Não tenho samba no pé/ mas tenho um pé no samba/ eu canto tanto o samba quanto o meu baião/ não venha me tolher, pois eu tô pra fugir/ das amarras da padronização”. (“Na lama na Lapa”, Khrystal/Valéria Oliveira) Quem ouviu a estupenda estréia da cantora Khrystal, em 2007 (e foram mais de nove mil discos vendidos, mesmo no disperso mercado independente), no disco “Coisa de preto”, foi surpreendido por sua capacidade de abordar de forma inovadora o ritmo do coco. Do primal conterrâneo Chico Antonio (“Usina”, com Paulirio), descoberto na década de 20, pelo folclorista, ensaísta e escritor Mário de Andrade, aos paraibanos Chico César (“Sem ganzá não é coco”) e Kátia de França (“Quem vai, quem vem”), os pernambucanos Lenine e Siba (“Coco da mãe do mar”), Dominguinhos e Toinho Alves (“Sete meninas”), Rosil Cavalcante (“Coco do norte”), o alagoano Jacinto Silva (“Quadra e meia”, “Coco do M”) e até os cariocas Guinga e Aldir Blanc (“Influência de Jackson”, “Baião de Lacan”). No repertório, de escolha arguta e roupagens provocantes, já havia uma amostra autoral da cantora na faixa título, dividida com o também potiguar Tertuliano Aires. 

Na verdade, Khrystal vinha de um longo percurso musical iniciado, aos 19 anos, como cantora da noite, intérprete antenada com o que denomina “MPB do rock”. Sua parceria com Simona Talma, “Volta”, ganhou o Festival de Música do Beco da Lama (MPBeco) e a dupla - aliada a outros autores locais como Valéria Oliveira, Ângela Castro e Luiz Gadelha - partiu para o projeto Retrovisor, que percorreu a capital, Natal, e mais Mossoró, Ribeirão Preto e Fortaleza.". “Coisa de preto” levou Khrystal ainda mais longe, a mais de cem cidades brasileiras, incluindo o Rio (Teatro Rival, em maio de 2009) e São Paulo (SESC Santana ) e a programas de TV de alcance nacional como “Som Brasil”, “Viola, minha viola”, “Sr. Brasil’, “MPBambas”, “Sr Brasil”. 

Agora, em “Dois tempos” ela exibe com maior amplitude sua face compositora (sem descurar da cantora, ainda mais afiada), amadurecida ao longo do tempo, e já requisitada por vozes como Liz Rosa, Valéria Oliveira, Nara Costa, Irah Caldeira, Dodora Cardoso, além de Luiz Gadelha e Simona Talma. “Fiz um show chamado ‘O trem’ onde eu experimentava a produção autoral diante do público”, relata ela. “Isso arredondava as músicas dava cara e corpo, coisa que só ao vivo acontece. Fui me apropriando delas, achando legal falar dos temas.sinto-me autorizada a puxar esses assuntos pelos compositores/parceiros e por mim mesma”, avalia. Uma abordagem que a aproxima mais da música que a formou. “A razão da mudança é o desejo de me experimentar como artista. Fui criada ouvindo MPB. Em 2004, é que tive contato com a cultura popular, e até então desconhecia um Elino Julião da vida, ou um Jacinto Silva. Diante da minha catarse, a conseqüência foi ‘Coisa de preto’, que me trouxe as melhores experiências possíveis e tenho o maior orgulho de tê-lo feito”, conta. 

A faixa título “Dois tempos” sumariza o conceito central do disco. “Quando fiz a música e usei o termo fui movida pelo vício de linguagem do meu lugar, Natal, RN, onde ‘dois tempos’ quer dizer ‘rapidinho’, ‘ligeiro’, e o disco tem apenas 48 minutos. Por outro lado, faz um contraponto com a coisa de eu ter passado cinco anos sem gravar. Demora por uma série de fatores, entre eles, eu não gostar de estúdio”, argumenta. Num samba gingado, a letra da faixa título alfineta: “Mato meu leão todo dia/ pra não ver meu canto calado morrer”. E lanceta: “o glamour tá na lida/ e não me custa nada/ só me custa a vida”. Khrystal inspirou-se no mote de “Objeto semi-identificado”, da fase mais radicalmente vanguardista de Gilberto Gil, em parceria com os Rogérios Duarte e Duprat (“compre, olhe, vire, mexa/ talvez no embrulho você ache o que precisa/ não custa nada / só lhe custa a vida”), em seu disco de 1969. “Logo pensei; que lindo! Quero usar isso em música minha. Pensando sobre o glamour que atrai a maioria das cantoras a essa profissão, e como isso é desimportante, lembrei dos versos e encaixei na letra. Arrematou bem minha idéia”, conclui. 

O informalismo de seu processo autoral conduziu a situações curiosas como a do saboroso xote crivado de adversativas, “Bem ou mal” (“bala é gostosa/ mas estraga os dentes/ casaco é chique/ mas aqui é quente/ cachaça aquece, mas encurta a vida”). “Recebi um e-mail de Luiz Gadelha com uma letra belíssima e fui numa ‘tara’ tão grande de mexer naquelas palavras e torna-las minhas também, que não verifiquei no anexo, que já havia uma melodia. Mas Lú disse que não tinha problema: ele cantava a dele e eu cantava a minha”, diverte-se. 

Em “Sendo córrego”, de refrão contagiante e cuíca no recheio, a parceira surpreendida é Simona Talma. “Por ela ser ligada ao jazz, blues e rock, samba era a última coisa que ela imaginaria que eu fizesse. E é bem solar, remete à Bahia e ao Rio, ritmicamente”, descreve. Já o chute no traseiro, também em compasso de samba esperto, “Casa de Mãe Joana” (“O meu suingue, meu compasso, meu tom/ você não conseguiu acompanhar”) foi encomenda de uma amiga. “Ela me pediu que falasse de separação ‘na boa’, de um jeito feliz e até bem humorado”, acredita. 

Os recados de “Dois tempos”, como sugere o título, são curtos, mas diretos. Se há espaço para o lirismo, na marcha rancho litorânea “Água do mar” (parceria com Zé Fontes, responsável pelo baixolão na faixa) e no sincopado “De contente” (“a tristeza do outro/ é alegria da gente”), não faltam flechadas em alvos certeiros. Como em “Arranha céu”, xote invadido pelas guitarras pesadas do parceiro na faixa, Ricardo Baya. “Tem gente comendo xepa/ sem ter nem perspectiva/ de quando vai comer pão/ falta remédio, cobertor e caixa d’água”. “Baya, meu diretor musical e guitarrista há seis anos, é um compositor talentosíssimo e muito visceral”, elogia Khrystal. “A letra tem revolta, preocupação, desejo de coragem, essas coisas todas que estão por aí e dentro da gente”, define. 

Também com Baya e mais Zé Fontes, a cantora escreveu mais um xote “O trem”, onde compara, “a vida a dois é feito rapadura/ que é doce, mas não é mole, não”. Aberta num coco de roda palmeado, “Zona norte, zona sul”, só de Baya, rendeu um belo vídeoclip, coerente com as imagens agudas da letra, lubrificada pela guitarra rascante do autor: “De que lado mora o seu preconceito/ atravesse a ponte que eu vou lhe mostrar (...) não tape o sol com a peneira/ maquiando o cartão postal/ me olhe dentro do meu olho/ me trate de igual pra igual”. Também na veia é “Potiguaras Guaranis”, de Baya com Zé Fontes, defesa apaixonada das raízes (“meu negócio é a cultura popular/ é o reisado, é o pastoril/ é o boi calemba”) costurada por guitarras uivantes. O gênesis da mistura já está sacramentado em “Esse meu baião” (“me viciei nesse negócio de fusão/ (..) tem batidas que sugerem samba/ tem outras que sugerem limão”), da própria Khrystal. “A música fala do Brasil, dessa mistura que somos nós. De botar guitarra nos gêneros tradicionais como o coco e ‘salgar’ o negócio”, exemplifica. 

Os tais “Dois tempos” da eloqüente cantora/autora não passam ligeirinho. As escolhas do roteiro são densas e muito bem articuladas, como a matreira “Compositor”, de Joyce Moreno e Paulo César Pinheiro, o fecho do enredo. “Mas como é que vive o compositor/ sem ser showman, sem ser cantor/ será que ele paga o lugar que alugou?” Mais um manifesto da libertária Khrystal que iniciara seu disco já dizendo a que veio: “Esteja onde eu estiver/ deixa eu cantar o que eu quiser”. Querer, no seu caso, é poder.
"

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez poemas de Carlos Drummond de Andrade no livro A rosa do povo

Consolo na praia Carlos Drummond de Andrade Vamos, não chores... A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas a vida não se perdeu. O primeiro amor passou. O segundo amor passou. O terceiro amor passou. Mas o coração continua. Perdeste o melhor amigo. Não tentaste qualquer viagem. Não possuis casa, navio, terra. Mas tens um cão. Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca cicatrizam. Mas, e o humour ? A injustiça não se resolve. À sombra do mundo errado murmuraste um protesto tímido. Mas virão outros. Tudo somado, devias precipitar-te — de vez — nas águas. Estás nu na areia, no vento... Dorme, meu filho. -------- Desfile Carlos Drummond de Andrade O rosto no travesseiro, escuto o tempo fluindo no mais completo silêncio. Como remédio entornado em camisa de doente; como dedo na penugem de braço de namorada; como vento no cabelo, fluindo: fiquei mais moço. Já não tenho cicatriz. Vejo-me noutra cidade. Sem mar nem derivativo, o corpo era bem pequeno para tanta