Pular para o conteúdo principal

Estação Infinita, de Ruy Espinheira Filho — Parte 03

Ruy Espinheira Filho
Foto: Mário Espinheira (interferida por Mirdad)

“Aqui estou
e não creio
porque em mim tuas palavras
tuas viagens a cavalo através das matas úmidas
      a memória do pomar da infância e do grande
                                 carvalho fendido por um raio
   o árduo trabalho pela justiça pago tantas vezes
                 com perus requeijões frutas hortaliças
ou não pago jamais
aquela manhã no quadrimotor eu 12 anos de idade
   e na mão
          a história dos cavaleiros da Távola Redonda
o comício contra os fuzis
    a cadela Baiana gemendo baixinho enquanto lhe
                                                  costuravas o ventre
                                        perfurado por uma estaca
de cerca
a dignidade
insuavizável como a do teu pai
a compreensão e o generoso
amor

Caminho
novamente caminho
estás comigo como quando pousavas a mão no meu
                                                                           [ombro
a ternura contida mas espessa”

--------

“Antes de tudo, não é nada disso.
Não te amo: é um amor de outrora
que te ama
como se diante de um espelho.

Talvez não me entendas. Mas isto
não importa: ainda que me
entendesses
eu sofreria igual”

--------

“Em dezembro morremos
todo ano.
                           E conduzimos nosso
desamparo
ao espelho. Rosto
tronco, membros:
                                   onde quem
vos habitou?”

--------

“Vangloriava-se de estar
a salvo de um mal:
                                                  perder
um filho.

Tornara-se imune a essa dor
de modo simples:
                                                  não tendo
filhos.

Sábio homem, esse,
cujo medo de perder
um filho
               o fez perder
todos os filhos”

--------

“Despedimo-nos do amigo
no azul da tarde. E, uns nos outros,
fitamos os rostos que
o tempo moldou sobre os
rostos suaves, aqueles
que nos fitam da memória”

--------

                       “Desse avô,
nada nos chegou
de gesto, palavra,
legado de posses
(estas últimas levadas
por incertos cálculos
e certos parentes).
Mas nos veio este
mistério amoroso
que comove como
cantiga longínqua,
inaudível quase,
incompleta,
                       e que,
no entanto, escutamos,
e em nós recolhemos.

Desse avô que se foi
antes de nossas vidas,
uma herança cintila
nos ossos, no sonho,
e é doce no poço
do coração”

--------

“Na calma das moringas
não se perde o rio.
Na água em repouso
ainda sonha o frio
da alma que flui,
espuma, ou voa (quando
se lança no vazio)”

--------

“Fecho os olhos. Quero
me apagar na noite,
                                     ser a noite,
                                     esse grande silêncio
lá fora,
                         onde espero que o mundo
não esteja mais”

--------

“Um dia recordarei
esta hora, estas palavras
que se escrevem leves como
a brisa, e com ela passam
para o jardim em que lembra
a minha alma
                        enquanto
tarda o tempo de esquecer”

--------

“Vejo-o ali, descalço na areia,
ouvindo o ar em valsa lenta.
Está ali, e em seu rosto a sombra
da ruga que me aguarda no espelho.

Mas não sou eu. É um que conhece a estrada
por onde passam lavadeiras.
                                                                 Não sou eu,
que não saberia ser tão leve
nem chamar pelo nome o perdigueiro
que se distancia, farejante.

É outro
                        com sua ciência de árvores,
murmúrios entre seixos, histórias
à luz do candeeiro,
                                       tudo o que perfaz
uma ração de mitos, anátemas, gorjeios.

Para dizê-lo
todos os alfabetos
                                       e nenhum.

Desconversemos
                                       que não podemos não
com este arquejo podrido do perempto
gotejando
doçura dolorosa de ex-manhã
e um menino
                           um menino
e seu inefável!”




Trechos dos poemas O pai, Antes de tudo, Poema de dezembro, Lendo Plutarco, Despedidas, Giuseppe, Moringas, Noturno, Enquanto e A música recusada, presentes no livro Estação Infinita e outras estações (Bertrand Brasil, 2012), de Ruy Espinheira Filho.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d