Pular para o conteúdo principal

Estação Infinita, de Ruy Espinheira Filho — Parte 04

Ruy Espinheira Filho
Foto: Mário Espinheira (interferida por Mirdad)

“Todo amor está perdido
ao nascer.
                       Em vão nossos corpos
nos absorvem, em vão
nos lançamos aos nossos
abismos recíprocos:
                                            o amor
aí não está.

Em nós ecoa o seu chamado
e nos submete. Mas apenas
chamado: ao fim
há outro chamado
                                        e outro
                                                             e outro
e na origem do outro
que sempre vem depois
(e portanto nunca chega)
está o amor,
o que é o mesmo que não estar”

--------

“Quando as vontades
não se eximem do rei,
                            quando
as cabeças (de)pendem
de um salto bambo na corda,
melhor é ter pronto o nosso
lado mais claune,
                               porquanto
menos importa a lei
que um polegar de rei”

--------

“Sei: com o tempo
só os mortos sobrevivem. Como você,
que passa distraída entre as árvores
e não me vê, distante, noutro plano;
                                                                e você
que me olha
com uma infância pungente
e me fala
com voz de lã.
Mas não me diz nada do que eu precisava
ouvir, enquanto eu nada lhe digo do que
precisava dizer,
como afinal sempre acontece
e logo é muito tarde.

                                       (Menos para os remorsos,
que no escuro vigilam; que no escuro
abrem seus poços sem fundo, onde
movem-se répteis dolorosos
e o que não se cumpriu:
doces cavalos
de asas amputadas, sangrando.)”

--------

“É agosto e ocaso. Logo mais
sem acender as lâmpadas,
lembrarei meus avós brasileiros,
                                                        meus avós
italianos,
imigrantes de 1914,
pensarei que tiveram avós e avós
                                                           e avós
e que de mim virão (possivelmente)
netos e netos e netos
e me sentirei perdido
entre
uma borda e outra
do Universo”

--------

“Impossível vencer os sonhos
contrariados.
                               Em vão
tentamos sepultá-los sob
a urgência cotidiana.
                                              Em vão
nos esquivamos, apóstatas.
                                                     Em vão
os trocamos
por esta outra vida.
                                              Pois eles
não sufocam, não
se distanciam, não
cessam de sonhar,
                                   de se sonhar
em nós”

--------

“Esta tarde
                        de súbito
                                              na chuva
curvei-me sobre mim
sobre
o que chamava amor e eis que era
sua falta
e por isso mesmo ainda mais
amor”

--------

                     “Ah o rumor
do coração.
                      Ah
essa lua.
                      E quando tentamos
disfarçar
como
brancas pedras de certeza
                                                ou neutra
superfície,
                      eis que uma voz
pergunta
                      (como o fantasma
de Platão
entre as páginas de Yeats):
                                                ‘What then?’
                                                                            E daí
desfaz-se
a trapaça.
                      E retornamos
à vida.
                      Sob o luar
da memória.
                       No rumor
do coração”

--------

“A vida transcorre
com uma lenta doçura,
assombrada de poemas
que iluminam como luas
o âmago sujo dos bares
(cárceres, porões, conveses,
nossos ermos, nossos lares)”

--------

“Rouca, por toda parte os seus tormentos
leva em versos de abismos e violentos

ventos. Áspera voz acende a tarde,
ou a noite, e a calma cessa, e a alma arde

a esse fulgor de desolado canto,
a essa palavra tanto espanto e pranto.

Pela cidade tece sua história,
num recanto intranquilo da memória

onde visito – angústia e alegria –
a esplêndida demência da poesia”

--------

“No papel em branco,
letras, frases, versos
traças na procura
de luz que disperse
a nuvem obscura
em que vais a esmo,
órfão de ti mesmo.

No papel em branco,
a busca infinita
(um tempo de vida)
que talvez não leve
senão à invenção
de mais outras névoas
sobre as névoas fundas
que jazem submersas”



Trechos dos poemas Do amor; Fragmentos de uma viagem com Lemuel Gulliver; Aqui, antes da noite; Agosto, ocaso; Flor; Passionária; O luar, o rumor; Visita do poeta Carlos Anísio Melhor; A poetisa e Espumas, presentes no livro Estação Infinita e outras estações (Bertrand Brasil, 2012), de Ruy Espinheira Filho.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d