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Composições de Emmanuel Mirdad: Lost Mails


Psicodelia progressiva da Orange Poem, uma bela canção bem ambientada por efeitos de guitarra (lembram desde arranjo oriental a um cello suave e harmônico) e uma interpretação fluida nos momentos suaves e forte/rasgada nos momentos altos da cantora Nancy Viégas (atual Radiola e ex-Crac! e Nancyta e os Grazzers). Os versos tratam de algumas automações de uma vida moderna, de correspondências perdidas, poesias ao redor e referências artísticas como Salvador Dalí e Clarice Lispector.



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Lost Mails
(Emmanuel Mirdad)
BR-N1I-14-00009

Waking up and think of nothing
There’s a lot to loose all day
Thank like a robot, agree with the ruling program
I acknowledge the frailty, my usual automatic

The best creation of his domain
All the air which inhabits me and runs away smells like nausea
They’re the flowers along the path dissolving prison’s pieces
A hurricane seeks options and brings me sleep in snow shape
Only regret the gray above my broken escape

Poetries around the atmosphere; that’s Dali twisting the clock hands
Lost mails return from Spain modelling the dream
In my insanity I kissed some toads, shut the critics with the fairy tales
Clarice coughed and I saw the sea: the abstract suicide

I make the clock bomb crazy and the foolish is the hero custom
All that’s hidden has got a sad end
The eagle flies above the ruins and the sand makes it thirsty
There’s only mud in the oasis of freedom


Faixa 02 - EP Wide (2014) | Faixa 08 - Orange Poem (2021) | Composta e Produzida por Emmanuel Mirdad | Nancy Viégas - voz | Mirdad - violão 12 cordas e grito | Zanom - guitarra | Tadeu Mascarenhas - guitarra | Fábio Vilas-Bôas - guitarra | Hosano Lima Jr. - bateria | Artur Paranhos - baixo | Gravado, mixado e masterizado por Tadeu Mascarenhas no Casa das Máquinas, Salvador-BA | Encarte EP  Wide: Glauber Guimarães | Capa 2021: Meriç Dağlı (foto) e Emmanuel Mirdad (design)



CONTEXTO

No processo de gravação do álbum "O Primeiro Equilíbrio" (1999/2000), do Pássaros de Libra, o arranjador André Magalhães encrencou com um verso da canção "Antiga Poesia", que dizia: "será que perderei os envelopes?". Ficava me pirraçando, cobrando uma explicação, já que, pra ele, o verso não tinha sentido na letra. Acabou virando piada interna e pra imortalizar nossa amizade, acrescentei-o, modificado, no título da música: "Antiga Poesia (envelopes perdidos)".

Anos depois, retirei o parêntese, arquivando a canção apenas como "Antiga Poesia". Mas antes disso, numa quinta, 29 de março de 2001, acordei com uma frase futucando minha cabeça: "Acordar e pensar em nada". Fui para um ensaio com o baterista Hosano Lima Jr. (a Orange Poem estava às vésperas de seu primeiro ensaio), e a frase continuava. De volta à casa, ela se ampliou com " há tanto o que perder no dia todo". Era o sinal; tive que poetá-la.


A partir do terceiro verso da segunda estrofe, a inspiração acabou e resolvi roubar partes da letra de "Flowers in My Way" ("I’m lost in a confuse hurricane" e "In my dreams I kissed some frogs", entre outros) e acabei direcionando a letra para ser uma versão em português da bela canção folk (que, ao lado de "Last Fly" e "Wideness", foram os destaques do 1º repertório laranja no quadrimestre final do ano 2000). O resultado não ficou muito bom e eu arquivei no mesmo dia a letra no caderno de versos, com o título de... "Envelopes Perdidos".

Talvez tenha passeado pelo caderno e encontrado a letra de "Antiga Poesia (envelopes perdidos)" e pensado: adoro esses envelopes, não posso perdê-los com o fim do Pássaros de Libra. Talvez tenha lembrado a piada interna. Talvez. Só sei que o título ficou e o poema foi completamente esquecido.



RECICLAGEM

Quinta, 21 de agosto de 2003. Eu estava a fuçar meus papéis, fazendo uma limpeza (volta e meia arrumo meus arquivos) e encontrei o poema "Envelopes Perdidos". Surpreso, não me lembrava mais de seus versos. Achei mal realizado e escrito "nas coxas". Mas a sincronia operou. Era o período "Last Fly" (de 21 a 24 de agosto), época que me trazia muita inspiração. Em vez de jogar fora, como fiz nessa limpeza com outros versos mal acabados e poemas ruins, decidi reciclar a letra, aproveitando suas melhores ideias.

De "Envelopes Perdidos" original de 2001, além do título, aproveitei: "Acordar e pensar em nada, há tanto o que perder no dia todo", "agradecer como um robô", "a melhor criação do seu domínio", "todo ar que me habita", "em meus sonhos beijei uns sapos" e "tudo que é escondido tem um triste fim", além de reciclar as ideias da bomba-relógio, náusea, fantasia e herói, e homenagear a canção "Flowers in My Way" com os novos versos "são as flores ao longo do caminho" e "um furacão busca opções". Pra fechar, inseri dois mestres que admiro bastante no novo poema: Clarice Lispector e Salvador Dalí.


Agora sim "Envelopes Perdidos" era um poema descente. O que fazer? Musicá-lo, lógico! No dia seguinte, uma noite chuvosa da sexta 22/08, os primeiros acordes surgiram. Como o sono era tamanho, deixei a composição pro sábado 23. Mas a melodia veio básica e veloz, algo no lugar da face pesada da Orange Poem, contrariando as psicodélicas gestadas anteriormente nesse período criativo de agosto (vide as belas "Last Fly" em 2000 e "Melissa" em 2001). Mesmo assim, possuía a energia necessária aos solos de Fábio Vilas-Boas e foi escalada de imediato no 2º repertório TOP.

"Envelopes Perdidos" tornou-se "Lost Mails" na quinta, 4 de dezembro de 2003. Gostei tanto da sonoridade que uma frase dela adquiriu em inglês que resolvi batizar o futuro 2º CD de "Sleep in Snow Shape". Ironicamente o peso dessa primeira versão de "Lost Mails" não tinha nada a ver com o sono em forma de neve.

The Orange Poem no 50º ensaio, em janeiro de 2004.


PESO E TRONCHURA

Terça-feira de Carnaval, 24 de fevereiro de 2004. À noite, ao invés de dar um "zignal" na namorada que ia trabalhar e ir pro último dia de carnaval como um legítimo baiano (que nunca fui), preferi ficar no violão "Alhambra" de minha mãe. Ao repassar o repertório do 2º CD, percebi que "Lost Mails" foi arquivada sem a cifra (no papel, só a letra, sem os acordes). Putz, que vacilo! Tentei relembrar a melodia, consegui em quase tudo, mas uma passagem se perdeu, que servia de mudança da melodia principal para o riff pesado. O jeito foi compor outra ponte e cifrar a canção que queria se perder (engraçado que não tenho nenhuma gravação dessa "Lost Mails" original, pesada, nos meus arquivos).

Dois mil e quatro passou, a Orange Poem fez vários ensaios e a série de sete shows chamada "Agente Laranja Gueto Cultural" e em nenhum momento "Lost Mails" foi sequer mencionada por mim; os músicos laranjas desconheciam por completo sua existência. Começamos a gravação do 1º CD, 2005 chegou, finalizamos e lançamos o bicho em setembro. Mais uma vez, a canção estava perdida no repertório. Nem em casa eu a tocava. Só resistiu e não foi arquivada porque batizava o 2º CD.

Era a sincronia operando para que não perdêssemos sua bela letra nessa melodia horrenda. Não sei precisamente quando, mas implodi o peso da canção (estava buscando, progressivamente, eliminar a face metal do som laranja), permanecendo a letra (!!!) no repertório sem melodia. No final de novembro de 2005, organizei o repertório de "Sleep in Snow Shape", e escrevi: "será composta ainda, em conjunto com Jesus (Zanom), Fábio e Hosano, no próximo ensaio".

Mirdad, Fábio e Zanom em 2005 - Foto: Rui Rezende.


Na tarde da quarta 14/12/05, rolou um ensaio de cordas do novo repertório com Zanom e Fábio. No apê 703-B onde morava, eu e o itapuãzeiro aguardávamos o atrasado pastor chegar. Sugeri então que os filhos de outubro 80 compusessem uma nova música. Apresentei a Zanom a letra de "Lost Mails", para que ele saísse cantando a primeira melodia que surgisse (sempre tentei trazê-lo para o centro do querer laranja, mas ele só quis tocar e só). Começou tímido; o guitarrista não estava muito criativo. Nada saiu.

Então, tive a ideia de pedir um 5/9/13. No primeiro show que produzi da excelente banda Sócrates no Tangolomango Bar (não lembro a data precisa), durante a passagem de som, brinquei com o baterista Smith, pedindo que ele tocasse um groove progressivo, evoluindo os tempos quebrados de 5 por 4 para 9 por 4 e, por fim, para 13 por 4. Muito louco, troncho, Smith mandou ver e a fórmula 5/9/13 gravou-se em meu inconsciente; retomei-a nessa quarta do sono em forma de neve.

Zanom criou alguns riffs e o trabalho seguiu. Ele, na execução e criação; eu, na formatação da nova melodia. Pro refrão, um estranho 6 por 8, que não se encaixou muito bem. Para a introdução, um riff interessante, muito próximo ao baião – e aí, vamos psicodelizar o som ou abrimos a concessão e tocamos sonoridade brasileira no novo repertório? (único exemplo até então foi o final bossa-nova da sequelada "Dubious Question"). Com o formato mais ou menos firmado, tentamos criar a melodia; Zanom ficou numa qualquer em português, e eu insisti com tentou "Lost Mails", sem jeito para se encaixar na harmonia troncha – precisaria de um estudo mais profundo, exigente. O processo parou com a chegada tardia de Fábio e fomos estudar o "Sleep in Snow Shape".

Mirdad, Zanom e Hosano em 2005 - Foto: Rui Rezende.


Dois dias depois, na noite da sexta 16/12, rolou o 89º ensaio TOP, o último do ano 2005. Mal de gripe, Fábio não pode ir. Ao menos foi uma excelente reestreia do baixista Artur Paranhos em um ensaio laranja (saiu da banda em agosto, mas aceitou gravar no novo CD). Ensaiamos maciçamente o novo repertório. Quando chegou a vez do poema "Lost Mails", pedi para que construíssemos a canção baseada nos riffs tronchos de Zanom da minha fórmula 5/9/13.

Pois o baterista Hosano se ferrou todo pra tentar tocar e não saiu resultado algum; ele teria que pegar pesado em casa, caso essa versão realmente fosse ficar. Digo caso, porque eu também não conseguia encaixar o poema em cima da repetitiva harmonia. Que sina. Nem peso, nem tronchura. E "Lost Mails" estranhamente permanecia, aguardando para ser encontrada.


ORIGEM

Desde o começo dos anos 90 que eu sentia um presságio muito forte, uma ânsia pela chegada de dois anos específicos, captada assim: "vai acontecer algo muito bom e relevante". Assim, o ano 2000 se cumpriu, parindo "Last Fly" e o projeto da Orange Poem, o grande amor Leila K (cuja felicidade e tristeza geraram muitas canções), o começo da amizade fraterna e presente com Rodrigo Minêu (que apoiou enormemente várias produções laranjas) e o vestibular definitivo para jornalismo na Facom/Ufba, onde me formei. O outro ano era 2006.

Rodrigo Minêu, o grande amigo de Mirdad, que registrou a Orange Poem em vários vídeos. Foto em 2004.


Para o projeto laranja, dois mil e seis era o limite, o último prazo. Já havia acordado o seguinte: caso não conseguisse nada por aqui, iria fazer o êxodo pra Londres por conta própria, com ou sem os demais músicos. E 2006 surgiu com o último na faculdade e o novo amor que se cristalizava fortemente na querida promissora Vanessa Caldeira. Comovido pela importância do ano redentor, na noite do Reveillon 2005-2006, fiz minhas orações de uma forma mais profunda, com os pés no mar do paraíso e as vibrações em alta, regida pelos fogos e gritos.

Morro de São Paulo, paraíso. Minha praia predileta da Bahia, quiçá do Brasil. Depois de um espetacular 2005, de muita curtição adoidada, eis que o Lado Negro da Facom/Ufba (a turma xibiateira que fundei e fazia parte) resolve repetir a histórica viagem de farra em 2002 organizando um Reveillon no paraíso. Só que, dessa vez, uma nova casa, entupidaça de agregados. E eu sobrei, por ter chegado apenas na quinta 29/12, tendo que hospedar o colchão e a recém-namorada Vanessa colados na porta do único banheiro. É, foi esquema Lost, mas foi massa.

Casa do Reveillon em Morro de São Paulo, Bahia.


A casa ficava no alto de um dos muitos morros de Morro de São Paulo. Da varanda, uma bela vista de mata e abismo, além de algumas barracas de faconianos & agregados (os primeiros espertos que chegaram cedo). Era sábado, 31 de dezembro, manhã com chuva e sol, pra alternar as expectativas para a grande noite da virada. Último dia do belíssimo ano de 2005 (o melhor da década 00 para mim, disparado!), minha recém-amada dormia. Vários faconianos também. Alguns acordavam aos poucos. Eu, madrugador, estava de pé há algum tempo.

Avistei o violão do comparsa Lázaro, o Flávio Bustani do Palossamba (Clube da Malandragem). Arrumei um cantinho na varanda pra não incomodar quem dormia nas barracas da varanda. Que bela vista, sereno + fracos raios de um sol a despertar, nuvens por dentro da mata, psicodelia. Sintonizei nas cordas e nasceu um trecho melódico bem simples, com uma pegada do fluido rosa. Toquei-o exaustivamente para não esquecê-lo, como se fosse possível esquecer tamanha simplicidade, ainda mais a batidaça caída harmônica de G, F#m e Em. Por fim, em paz, revisei todo o repertório de "Shining Life, Confuse World", como se para abençoá-lo e reafirmá-lo na chegada do precioso ano. E no universo paralelo do Lado Negro em Morro de São Paulo, cristalizei uma genitora sequência melódica.

Flávio Bustani e o seu violão em que Mirdad compôs a origem de "Lost Mails" no reveillon de 2005/2006.


Quinta-feira, 05 de janeiro de 2006. De bobeira em casa, renovadaço pela boa farra em Morro, fui ao violão retomar a sequência fluida, a fim de eternizá-la em uma nova canção laranja. Compus mais uns dois trechos melódicos, dando uma cara progressiva à harmonia, finalizando com um posfácio suingado, parecido com o que fechava "Clouds, Dreams" nos primórdios da banda e que está registrado na jam que encerra o DVD demo de 2003. Empolguei!

No embalo, tentei escrever uma letra nova, mas a preguiça bateu – gastei os neurônios artísticos na melodia. Fui revisar o caderno de versos e não encontrei nada sobrando. Exceto... "Lost Mails". Claro! Com o peso não deu certo, com a tronchura 5/9/13 menos ainda (nada de parceria com Zanom, putz!). Algumas pequenas modificações na letra aqui e ali, eis que nasce a bem vinda versão definitiva da canção, que continuou no repertório do 2º álbum, por decisão umbilical de um pai coruja. Pirei na música, xodó instantâneo!!! – foi uma das que mais toquei ao violão em 2006. Eis que a sincronia finalmente me fez encontrar os envelopes não mais perdidos.

Até hoje, 2014, "Lost Mails", de 2006, é a última canção em inglês composta por mim.

Hosano Lima Jr. em 2005 - Foto: Rui Rezende.


CONSTRUÇÃO

O primeiro laranja a conhecer a nova e definitiva "Lost Mails" foi o baterista Hosano Lima Jr., no ensaio preparatório só com ele para a gravação de "Sleep in Snow Shape" em 20 de março (apresentei também "Homage" e "Farewell Song" que ele não conhecia). Pois a bela canção não teve reverberação no amigo. Na semana seguinte, mais um ensaio, faltando menos de um mês para começar o 2º álbum TOP. Depois de ensaiarmos três músicas no cafofo sauna do apê de Hosano, já perto de dez da noite, partimos pra última. Puxei "Lost Mails", que foi criticada na chapa pelo baterista: "esse disco está bem lento". Rebati: "opção pela excelência floydiana do som laranja".

O baixista Artur Paranhos conheceu "Lost Mails" no atípico 93º ensaio TOP sem os guitarristas; Zanom teve de levar seu pai às pressas no hospital e Fábio simplesmente não quis ensaiar com um antológico "ô, véi, to cheio de coisa me atentando que não dá pra ensaiar hoje não". Baixo, bateria e violão, "Lost Mails" foi a mais ensaiada, com um longo tempo dedicado apenas à última parte (a gruvada) e a criação das paradas (silêncio total) nas partes das subidas E, F, G e Am (ex : "...sleep in snow shape").

Orange Poem completo ensaiou pela 1ª vez "Lost Mails" na terça, 04 de abril de 2006, 94º ensaio. Estudo meia boca, sem nenhum comentário de Fábio e Zanom, que saíram tocando qualquer coisa, e o groove final foi confirmado. Ao menos fiquei satisfeito que a canção foi mesmo inserida no repertório e seria gravada no 2º CD. E na segunda 17/04, registrei "Lost Mails" no escritório de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional em Salvador, no caderno de letras e partituras "Sleep in Snow Shape", junto a mais sete músicas ("Homage" e "Farewell Song" incluídas).

Trecho inicial da partitura de "Lost Mails", transcrita de punho pela mãe de Mirdad, Martha Anísia, registrada na Biblioteca Nacional no caderno "Sleep in Snow Shape".


GRAVAÇÃO

"Lost Mails" começou a ser gravada sem os arranjos dos guitarristas estarem prontos, nem a sua forma ideal. Mas foi mesmo assim, um retrato preciso do processo do "Sleep in Snow Shape", que foi construído durante o seu registro. 20h15 da quarta 26 de abril de 2006, a quinze minutos do fim da 1ª sessão, no estúdio "Casa das Máquinas", de Tadeu Mascarenhas, o baterista Hosano Lima Jr. sugeriu "Madness", mas o produtor (eu) cortou a ideia. Ela não era fácil, tinha umas quebradinhas e pedaços diversos que poderiam complicar num final de sessão. Pensei em "Farewell Song", mas o baterista cortou enfaticamente: "essa não!". O jeito foi recorrer a "Lost Mails", quadradinha, com um groove no final que Hosano dominava tranquilamente – gravou com maestria, embora que tinha ficado descontente com sua performance na sessão (como sempre).

No domingo 07/05, rolou o 2º ensaio preparatório com o guitarrista Fábio Vilas-Boas no apê 101 do Edf. Cosdam, Avenida Paulo VI, onde ele morava. Uma chuva torrencial transformou Salvador em cinzas, clima deprê, ótimo pra tocar. Passamos um bom tempo em "Lost Mails", onde testamos vários arranjos, ficando apenas com a base da guitarra-teclado. O pior foi que ele descartou sua presença nos próximos dois ensaios antes da despedida de Hosano de Salvador (estava de mudança para Jundiaí-SP), com a estranha desculpa de que não queria mais ensaiar à noite, pois ficava perturbado e não conseguia dormir depois.

Com o baixista Artur em casa preferindo estudar a sós com o metrônomo, o 98º ensaio (09/05) teve a laranja como power trio de novo (como no 93º citado mais acima). Hosano passou muito tempo parado, mexendo no metrônomo, circulando pela sala, resumido pelo seguinte comentário: "Porra, isso aqui é ensaio de cordas, seus sacanas... o que é que eu tô fazendo aqui?". Zanom estudou bastante as novas músicas, mas quando chegou a vez de "Lost Mails", ele pediu penico: "nem sei pra onde ela vai".

Mirdad grava o violão 12 cordas em "Lost Mails" em 19/05/2006.


Artur Paranhos gravou o baixo em "Lost Mails" na quarta 10 de maio, 4ª sessão. Foi a primeira da tarde, gravada tranquila e rapidamente. Eu gravei o violão no xodó na manhã da sexta, 19 de maio, 8ª sessão. Depois de registrar três músicas, cheguei ao final da sessão. Entre gravar "Cuts", que era muito longa, e "Neither Gods, Nor Devils", que tinha o problema do perfeccionismo do riff (acabei nem gravando nela depois), escolhi, pra garantir o violão, "Lost Mails", que precisava muito mais do instrumento que as outras. Porém, foi a mais estressante do dia. Eu não conseguia entrar certo na primeira nota; confundia-me com o tempo e a pegada do baixo. Acabei desistindo de gravar as notas do riff. Tadeu teve de bancar o psicólogo e eu só consegui gravar na base da raça. Cansado e sem saco pra nada, desisti de novo: nada de violão no groove – Zanom que gravasse o riff e a base do final.

Terça, 23 de maio de 2006, quatro anos da estreia de Artur Paranhos no Orange Poem, rolou o ensaio de despedida de Hosano, o 99º. A essa altura, com baixo, bateria e violão gravados no 2º álbum, e os ensaios solitários de Fábio acontecendo, não tinha motivo mais pra ensaiarmos. Mas fizemos, para registrar o começo do fim. Repassamos o repertório, e Zanom criou o arranjo em slide para "Lost Mails".

The Orange Poem (sem Fábio) no 99º ensaio em 2006.


Primeiro dia de junho, greve de ônibus em Salvador, a empregada não veio e eu fiquei sem almoço. Quem salvou foi Fábio, que trouxe o rango e ensaiamos pesadamente as músicas do "Sleep in Snow Shape". No dia seguinte (coincidentemente oito anos antes do que viria a ser o dia do lançamento do EP Wide), 11ª sessão, o guitarrista (atacado bizarramente de alergia e em marcha lenta) ligou o módulo Digitech RP-01 no delay "tecladão" e foi gravar "Lost Mails" às 11h.

Muitos erros nos acordes, erros estranhos. Entrei na sala pra entender o que tava rolando. Quando vi, a cifra era da música errada – Fábio costumava confundir "Lost Mails" com "Another Lost Skin", ainda mais lesado pela alergia como estava. O "tecladão" ficou pronto, pausa pra tomar água e pensar no que o guitarrista ia fazer na parte do acorde fá ("A hurricane seeks options... "). Minha sugestão foi abaixar e levantar o volume das notas; Tadeu traduziu isso emprestando o seu pedal de volume. Fábio gravou e ficou lindo, mesclado ao delay. Já na sexta 09/06, 12ª sessão, o guitarrista gravou rapidinho o seu solo no groove final da canção.

Tadeu auxilia Fábio a escolher o timbre pra gravar "Lost Mails" em 02/06/2006.


Antes da pausa de São João, gravei a voz na minha xodó na sexta 16 de junho. O registro foi fluindo tranquilamente; defini a melhor intenção e fiz as já rotineiras correções de afinação. Mas aí faltou luz no bairro inteiro – a sorte é que não demorou muito pra voltar. O bizarro foi ouvir de Tadeu que tinham perdido a voz de "Lost Mails" com o apagão. Fiquei na merda, tentei regravar, mas não consegui colocar a mesma intenção. Arrasado, abortei a gravação. Antes de ir embora, por um milagre, Tadeu encontrou o arquivo da voz e salvou o dia. Apenas consertei a afinação em algumas passagens e a voz ficou pronta.

Quarta, 28 de junho de 2006, 15ª sessão, pausa para o almoço. Tadeu levou Zanom e eu pra comer num boteco no largo de Santana, Rio Vermelho. Bife acebolado, carne do sol e frango, cada um com seu prato e sua resenha – a minha foi contar como conheci os músicos e formei a banda. De volta ao "Casa das Máquinas", pedi a dona da tarde inteira: "Lost Mails". Zanom consumiu um bom tempo gravando o slide na guitarra. Quando chegou na parte do acorde fá, travou. O que fazer? Qual arranjo criar?

Tadeu auxilia Zanom a escolher o timbre pra gravar "Lost Mails" em 28/06/2006.


Tadeu recuperou a ideia do pedal de volume, como foi com Fábio, mas um pouco diferente, algo como um violoncelo. Topamos! Aí, Zanom tentou fazer, mas não conseguiu a pegada que o arranjo precisava. Passei a responsa pra Tadeu, que assumiu a guitarra e ficou testando vários arranjos, consumindo um tempo danado, mas ficou muito bom. Zanom aprovou e adorou. E assim começou a primeira participação especial nesse álbum, a primeira de Tadeu Mascarenhas na Orange Poem.

Veio a parte groove de "Lost Mails" e o guitarrista Zanom gravou um arranjo clean sutil. Não ficou legal, muita informação. Pedi então pra Tadeu gravar um piano Rhodes e fui prontamente atendido. Alguns takes depois e as teclas estrearam no poema laranja. O resultado ficou tão bom que Zanom abriu mão do seu solo.

Tadeu Mascarenhas grava sua 1ª participação na Orange Poem em "Lost Mails" em 28/06/2006.


Na quinta, 6 de julho, fui até o IRDEB. Revi o pessoal da Rádio Educadora, colegas de trabalho em 2004/2005 (seriam novamente em 2009/2010), e me encontrei com o amigo ex-chefe Mário Sartorello. Tinha projetado sua participação no 2º álbum TOP, gravando um solo de sax barítono no final groove de "Lost Mails". Apresentei a canção, o lugar do solo e deixei um CD pro amigo ensaiar. Dei um prazo longo, pra quando o corre-corre da vida de Mário permitisse. Não permitiu. No mês seguinte, via telefone, pediu muitas desculpas e negou – por conta do trampo na Educadora, não tinha tempo de ensaiar no sax. Ficou para uma longínqua próxima vez um outro convite (nunca mais rolou).

Na 18ª sessão de gravação, quinta, 17 de agostoZanom concluiu sua participação no "Sleep in Snow Shape" pela manhã (foi o único que teve mais tempo para criar seus arranjos). Na vez de "Lost Mails", tinha duas sugestões (desistiu de tocar acordeon nela): o arranjo 01 era um dedilhado estranho, que não casou bem com a melodia; já o arranjo 02, um dedilhado abafado lembrando uma marimba me encantou e foi o escolhido. E na parte groove, topamos o arranjo apenas na parte da voz – um scratch nervoso, feito com wah-wah e cordas abafadas.

Na manhã da terça, 29 de agosto de 2006, fizemos a primeira mix de "Lost Mails". A meu pedido, começamos por ela, porque era imensa de tracks e consumiu três horas de mix. O maior esforço foi achar o timbre preciso do Rhodes, entre o que Tadeu e o que eu queria. A "marimba" de Zanom subiu de posto e ganhou do slide a honra de introduzir a canção. Sax no ponto, muita atenção a todos os detalhes, ficou lindo o meu xodó, maior orgulho! Concluímos a canção na quarta 30/08. Regravei a palavra "critics" (tinha registrado como "crits"). Na parte 2, ao invés de recomeçar a música com a marimba, deixei pro slide fazer sozinho, pra variar. E fizemos mais alguns ajustes na parte groove.

Zanom grava a "marimba" de guitarra em "Lost Mails" em 17/08/2006.


"Sleep in Snow Shape" ficou pronto no início de outubro de 2006. Um desperdício. Gaveta nele, pois a banda acabou em março de 2007. Dois anos depois, quando resolvi disponibilizar duas coletâneas dos álbuns pra download no meu blog (uma com a face psicodélica e a outra com a face rock), fiz uma edição de "Lost Mails", eliminando seu final de groove. Analisei meu xodó e verifiquei que esse posfácio não tinha nada a ver com o brilho da canção. Era quase uma concessão ao "a banda está muito lenta nesse CD", forjando um momento dançante incoerente com a sua beleza de transcendência psicodélica. Pois bem, cortei e fiz bem. Aquela manhã etérea do final de 2005 voltou à canção, para sempre.

PS - Assim como o ano 2000, a previsão acertou que 2006 seria muito bom e relevante. Três motivos: a gravação de "Sleep in Snow Shape"; a conclusão do curso de Jornalismo na Facom/Ufba; e o primeiro ano de um grande amor que durou três anos e meio.

Nancy Viégas grava a voz em "Lost Mails" em 14/05/2014.


VERSÃO FINAL

De todas as 22 músicas que gravei a voz na Orange Poem, "Lost Mails" foi disparada a minha melhor interpretação. Quando retomei a banda em 2014 (processo iniciado na gravação do EP Ground em dezembro de 2013 com a voz de Glauber Guimarães), tinha pensado em Artur Ribeiro para regravá-la, mas como o amigo negou a proposta, cogitei deixá-la como está, para que o CD cheio do final do ano tivesse ao menos uma canção com meu registro vocal. Que nada! A sincronia arrebentou essa ideia rapidinho, para que "Lost Mails" pudesse ser eternizada no extremo de sua beleza.

De um dia pra outro, desisti de ter minha voz (mesmo com a melhor interpretação dela), e mandei a canção para Nancy Viégas avaliar no primeiro dia de abril de 2014. E, pra minha gratíssima surpresa, a múltipla artista curtiu meu xodó e topou gravá-la, mesmo com a dificuldade evidente: o tom grave para a sua voz e a melodia entupida das palavras do poema.

Tadeu Mascarenhas, Nancy Viégas e Emmanuel Mirdad na gravação do EP Wide - Foto: Germano Estácio.


A gravação do EP Wide foi agendada para maio. Nancy focou os estudos em "Wideness" e "Shining", e não teve tempo pra se dedicar à "Lost Mails". Na tarde da quarta, 14 de maio, encarou o desafio de gravar muita letra num tom pra homem. Em três horas, ralamos bastante. Nancy foi compreendendo a música durante a gravação, testando interpretações, regravando muitas vezes vários trechos.

Tadeu quis seguir no formato linear e eu assumi a direção pra otimizar a sessão. Ao invés de regravar, opções de gravação; Nancy passou a gravar algumas vezes os trechos. Tadeu questionou se não estávamos perdendo trechos e eu respondi: "confie em mim". Em 3h de estúdio (das 16h30 às 19h30), a múltipla artista terminou seu trabalho. Mais uma hora pra mixagem – assumi a edição e indiquei para Tadeu os caminhos do quebra-cabeça, frankzando a voz. Aos poucos foi tomando forma a belíssima interpretação de Nancy Viégas. No final, fiquei profundamente emocionado e muito satisfeito com o resultado. Bravo, Nancy, bravíssimo!

A cantora Nancy Viégas e o produtor Mirdad celebram a excelente sessão de "Lost Mails". Foto: Tadeu Mascarenhas.


A mixagem final rolou na segunda 19/05 e o EP Wide foi lançado na segunda, 02 de junho de 2014. E aquela canção que leva no nome uma celebração de amizade, no poema o orgulho de seu poeta por um trabalho bem feito além das homenagens a Dalí e Lispector, e na melodia a transcendência de uma manhã em Morro de São Paulo, foi eternizada, para nunca mais ser perdida.

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Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d