Pular para o conteúdo principal

Brancos reflexos ao longe, de Mayrant Gallo

Mayrant Gallo
Foto: Gal Meirelles | Arte: Mirdad


"– Muito prazer, eu sou a morte.
A mulher não lhe estendeu a mão, nem disse nada, nem sequer lhe voltou o rosto. Por um instante a mão da jovem, dispersa no ar, tremeu misteriosamente para, em seguida, recolher-se ao trabalho de afastar do rosto os fios de cabelo rebeldes, assanhados pelo vento.
– E se eu for mesmo a morte? – disse, o rosto a gozar do frescor úmido que subia dos arrecifes golpeados pelo mar.
(...)
– Mas você não é – a mulher respondeu, um sorriso enigmático a distender-lhe os lábios finos, sem cor.
– Sim, não sou. Mas, e se eu fosse?
A mulher enfim a encarou:
– Eu a aceitaria. Que mais poderia fazer?"


"(...) seu destino mudara, embora continuasse o mesmo"


"Perceba: no seu livro tudo é tão real, tão demasiadamente real, que soa falso, ou, melhor dizendo, fantástico. Espécie de simulação do real. A representação exagerada não passa de uma simulação. Qualquer um nota, sem esforço, que o invólucro do livro é uma encomenda. É disso que o passarinho reclamou, desse exagero que transforma o real em fantástico, pois este quase se funde ao ideal. Não um ideal impossível, distante, utópico, do qual mal nos aproximamos, mas um ideal realista, forjado no detalhe e legitimado pelas minúcias. Inverteram-se os papéis: o real pobre, infiel às idealizações, hoje é fantástico, e o fantástico, com todo seu requinte, transformou-se no real"


"Se o útero é um enigma, essa primeira fase da vida é como um vácuo. Você mal se recorda de si. Guarda, porém, a imagem de um quintal, com antigos objetos de casa espalhados pela terra e já vítimas do impiedoso desfolhar das intempéries (...) Uma súbita e glacial escuridão, seguida de um peso agudo, devastador, à altura do peito, e que hoje você compreende que era, talvez, certa intuição acerca da angústia de viver"


"Com o passar dos dias, a moça se convenceu de que não havia mais esperança, e que o cisne se achava realmente sozinho e por isso vagava ao longe, em meio às luzes. A última compreensão que tiveram deixou-os perturbados. Foi a moça que a sacramentou, com um doloroso comentário:
– Como eu, ele também pensa que as luzes são sua companheira. E passa as noites a nadar, enganado pelas aparências"


"Um dia, ao passarmos com as maletas abarrotadas de dinheiro, reconheci entre os peões o cara cujo nariz eu havia quebrado, naquele distante dia de minha juventude (...) Fomos chamando os homens e lhes passando o pagamento. Por coincidência, o cara foi um dos últimos, e isso me causou uma terrível agonia. A cada novo nome, imaginava que fosse o dele e me preparava para encará-lo, frente a frente. Não lembrava seu nome; aliás, jamais o soubera. Era o que podia haver de mais sórdido e covarde, bater num homem cujo nome ignora-se"


"(...) o fantasioso, o quimérico, o onírico não mais surpreendem, ao passo que o real, na sua forma mais crua e impiedosa, não consegue mais chocar nem a uma criança (...) Uma questão de valores, ou de ausência de valores, num tempo de incertezas"


"Há um abismo entre as pessoas, em especial entre o poeta e o homem comum, que já não se respeitam, nem se admiram. Nosso silêncio, como se diz nas salas de aula, era sintomático. O ponto nevrálgico de um problema insolúvel"


"É uma ilusão achar que as outras pessoas são mais felizes. Ninguém é mais feliz que outro: só possui mais dinheiro, mais amor ou mais paz, mais saúde ou mais poder"


"A praia estava deserta e escura, já que a lua se fora, alheia às necessidades humanas de luz e calor. Mas o céu estrelado iluminava, martelava-lhe o cérebro com sedutoras ideias de outros mundos habitados, cheios de vida, uma vida talvez imortal. Victor se deitou, de costas, pernas e braços abertos, a receber no peito o que o céu deixava cair"


"A chuva o acordara – um barulho forte nas telhas de alumínio da varanda dos fundos –, e de pronto se lembrou das nuvens de ontem, em formação, em marcha, como um exército a se reunir na planície. Moviam-se – agora sabia – para acabar com o resto do verão, fazer valer o outono, como um marido que chama a esposa às obrigações dos lençóis"


"A evidência do desconhecido e do improvável feria mais que o frio cortante daquela manhã de outono. Se o homenzinho não estivesse ali, Júlia não se importaria com sua própria nudez, mas, uma vez que estava, pediu quase aos gritos a coberta e, agasalhada, protegida, sentou-se à beira do fogão de lenha, os lábios ainda trêmulos, olhos fitos, de um verde sem mistério.
(...)
A moça também os examinava; e igualmente a criatura, que, do fundo da gaiola, não os perdia de vista. Contudo, seu rosto, plácido e inescrutável – e era isso que conferia à cena uma sutileza maligna – não demonstrava qualquer emoção"


"(...) tomou o rumo da casa onde ia trabalhar durante as próximas seis semanas. Assim tinha sido no verão passado, e assim seria agora. Ele não compreendia aquelas pessoas, mas não fazia disso um problema. Se queriam alguma coisa, por mais difícil que fosse, ele a providenciaria. Se lhe pediam esse ou aquele objeto, ele os colocava em suas mãos, sem hesitar, nem demonstrar surpresa. Era o empregado. No último verão, surpreenderam-no muitas vezes, sem dúvida, tanto que, no fim, nos derradeiros dias, já não se espantava. E se lhe pedissem que ficasse nu, talvez só hesitasse porque sempre teve dificuldade em se despir diante de outras pessoas, homem ou mulher. Jamais porque achasse estranho tal pedido. Era o empregado"


"(...) além de Victor, só havia um jovem casal. O rapaz se apoderava do corpo da garota, com estertor, frenesi. Encolhida, ela mal podia se proteger e, portanto, deixava-se recolher ao musculoso e tórrido convés que a envolvia. Os beijos se prolongavam por minutos, ambos numa imobilidade quase marmórea"


"Você cresce. É um ato que (...) não há como evitá-lo, nem tampouco como conferir-lhe aceleração. Ato letal, como o destino de uma estrela, que se distende, expande e afinal explode. Naturalmente, você não se lembra de muita coisa: os dias existem para uma irremediável perda. São apenas um ponto, um algarismo em negro num dado mês, num exato ano. Como ilhas num mapa. Manchas na pele. Fissuras numa cara. Não excitam, nem param"


"Juan era do tipo que repetia as piadas para renovar o prazer de ser divertido, fazer rir, e não apenas uma vez, mas duas, três, até que ele próprio se transformasse num eco no vazio. Desta vez o fez mediante uma variação, que, entretanto, não surtiu efeito. Nem a esposa o censurou, nem a pequena plateia sorriu. Vislumbrou-se apenas o malogro de uma lâmpada que, ante a promessa de luz, oferecesse fagulhas"



Presentes no livro de contos "Brancos reflexos ao longe" (Livro.com, 2011), de Mayrant Gallo, páginas 29, 27, 81-82, 93, 22, 09, 83, 88, 24, 25, 43, 48, 31, 80, 95 e 56, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d