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Composições de Emmanuel Mirdad: The Unquietness


Uma das mais belas canções do repertório da Orange Poem, com destaque para os arranjos dos guitarristas Zanom e Fábio Vilas-Boas, essa progressiva psicodélica é o pilar mais forte da face "Floyd" da banda - nos ensaios, a Orange Poem desligava todas as luzes do estúdio e decolava para uma outra galáxia. Inquieto ser que abre a janela e se questiona: devo atirar-me à busca no mundo ou aprofundar-me no casulo de minhas dúvidas surdas? Canção que abre e inspira o nome do EP Unquiet, lançado em abril de 2014 (e está presente no álbum Orange Poem, disponibilizado nas plataformas digitais em 2021), chega à eternidade na voz folk do cantor Rodrigo Pinheiro (ex-Besouros do Sertão e atual Mulher Barbada).



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The Unquietness
(Emmanuel Mirdad)
BR-N1I-14-00005

A wide field accepts my dreams
I woke-up very early and I’m impressed
With the quiet morning that joys the birds
With so much beauty that arrested my devils
I’m asleep without even have closed my eyes

A wide field increases my dreams
I forgot to say goodbye and got happier with this
I closed the doors to jump out of the window
Like a child I realize and like a youngster I confuse
And the good sense conforms like it was a mother

Where are the challenges but in ourselves?
Where’s the freedom but in the inside secret?
When was the last time that I felt in peace?


Faixa 01 - EP Unquiet (2014) | Faixa 10 - Orange Poem (2021) | Composta e produzida por Emmanuel Mirdad | Rodrigo Pinheiro - voz | Mirdad - violão 12 cordas | Zanom - guitarra | Fábio Vilas-Bôas - guitarra | Hosano Lima Jr. - bateria | Artur Paranhos - baixo | Gravado, mixado e masterizado por Tadeu Mascarenhas no Casa das Máquinas, Salvador-BA | Encarte EP Ground: Glauber Guimarães | Capa 2021: Meriç Dağlı (foto) e Emmanuel Mirdad (design)



CONTEXTO

A gravação do álbum "O Primeiro Equilíbrio" estava a pleno vapor no final de 1999. O guitarrista Juracy do Amor topou formar comigo um duo, o Pássaros de Libra, e passou a ser o cantor do disco – originalmente eu seria o cantor, mas fracassei. Só que os festejos de dezembro chegaram e uma pausa foi inevitável; adiei os trabalhos e viajei para Ilhéus, Sul da Bahia, meu lugar sagrado de descanso. Tempos felizes; tinha abandonado a faculdade Psicologia na Ufba para seguir na música e me reaproximado de um grande amor. 

Vivi uma romântica e breve história com a bela Thania Patrícia em 1997. Noite de sábado, 31 de maio, fui para um daqueles shows de axé no (hoje finado) Clube Espanhol que arrastavam multidões. A única função era: paquerar – tinha 16 anos. Pois a sincronia me apresentou um par de olhos inesquecíveis, que me amou e foi amado de imediato, à primeira vista. Vinda de Euclides da Cunha, sertão da Bahia, estava passando um tempinho na capital e já ia voltar. Numa época sem Facebook ou celular, como estabelecer vínculo? Entreguei-lhe meu inseparável colar de Bob Marley – comprado no Rio de Janeiro em 1995 e até então nunca o retirava do pescoço, em qualquer lugar que eu fosse, independente da roupa ou da ocasião. Disse que pegaria de volta diretamente das mãos dela, nos festejos de São João. 

Cidade de Euclides da Cunha no Natal de 2011 (foto: Raimundo Mascarenhas) PS: Não achei uma foto legal do São João na cidade.


O interessante foi que eu nunca tinha ido para o sertão e pior, não peguei nem endereço e nem ao menos telefone. Não sabia onde era, como ir e, caso realmente fosse, onde procurar pela amada à primeira vista. Nenhuma referência. Mas fui, minha primeira viagem de aventura, na cara e coragem. Poucos reais na carteira e um sertão para desbravar. Foi a sincronia (de novo) que me fez encontrar Hou (meu apelido para Thania) em pleno São João bombado de Euclides da Cunha (na época era bastante procurado), em uma coincidência fantástica. Vivemos uma breve relação à distância, pura, com algumas idas a Euclides, trocas de cartas apaixonadas e como trilha, a Legião Urbana. O amor por Hou me enfurnou ao violão e às composições. Não resisti à ausência distância e terminei o namoro ainda em 1997.

Nos anos seguintes, compus, nostálgico, duas canções para ela: "Hou" (1998) e "Song for Patrícia Hou" (1999). A última foi esquecida, e a primeira acabou originando a primeira parte da laranja "Farewell Song". Só que antes do blues, a harmonia que começava em A9 e ia pra A (a tal parecida com "The Unforgiven", do Metallica) deu origem a outra canção.


ORIGEM

No segundo semestre de 1999, única época em que usei uma barbicha de bode roqueira, me reaproximei de Thania Patrícia, que estava arrumando as coisas pra vim morar em Salvador. Fui para Ilhéus e deixei pré-acertado para ela ir passar o grande Reveillon da virada para o ano 2000 na querida princesa do Sul baiano. Dose extra de emoção, naquela magia de "fim de mundo", bug do milênio, a probabilidade de viver um amor renovado, que poderia finalmente ser vivenciado, pois a distância seria superada. Só que aí... um bizarro mal-entendido fez com que não passassem juntos.

Não me lembro precisamente o que aconteceu, só sei que quando ela decidiu vir para Ilhéus, não tinha mais passagem de ônibus disponível. Passei só, na orla da cidade, numa tristeza do caralho. Virei a ficha; de feliz para frustrado em queda brutal. Esse banzo me enfurnou no violão de minha irmã e gerou muitas canções, como a tristonha "Emmanuel no País dos Vampiros", uma xodó de minha depressão. Nessa leva de novo milênio, escrevi o poema "A Inquietude".

Há sempre o novo dia. Do fundo, só resta contemplar a luz no alto e subir. Começo de uma bela manhã, sol. Acordei na casa da família no Jardim Savóia em Ilhéus. O belo cansou o banzo, resolvi curtir o verão e aí sintetizei em versos: 


A Inquietude
(Emmanuel Mirdad)

Um vasto campo acolhe minha persistência
Acordei muito cedo e estou impressionado
Como a calma da manhã diverte os pássaros 
Como as árvores tecem belas rendas de luz
E o coração dá bom dia à saudade

Um vasto campo amplia minha persistência
Esqueci de dar adeus e fiquei feliz com isso
Fechei as portas para pular as janelas
Como criança fantasio e como jovem confundo
E a razão conforta como se fosse mãe

Onde estão todos os desafios senão em nós mesmos?
Onde estão todos os caminhos senão na estrada do eu desconhecido?
Onde está Deus senão em teu espelho e nos teus olhos de esperança?

O melhor a fazer é se conhecer
Para desconhecer o que é conhecido e falso


Família de Mirdad reunida no ano 2000 em frente à casa do Savóia em Ilhéus.


Compus "A Inquietude" numa sexta, 10 de janeiro de 2000. Não me lembro se foi no mesmo dia em que escrevi o poema acima. Mas foi nesta sexta que criei a canção, que utilizava para o começo de duas estrofes a melodia da canção "Hou" – talvez um resquício da frustração pela ausência de Thania no Reveillon e um implícito desejo de superar esse amor, pois o desencontro poderia ser um sinal de que ele já tinha passado (e foi isso mesmo, pois, na volta a Salvador, terminei o affair). O restante da melodia tinha passagens interessantes, de subida e descida de acordes, uma harmonia um pouco mais elaborada que a safra de então.

Pois a TV Globo lançou as inscrições para o Festival da Música Brasileira (saiba mais aqui) e eu me empolguei totalmente com a possibilidade de inscrever "A Inquietude", que tinha uma pegada progressiva épica, com uma temática nos versos que figuravam muito bem no universo MPB. Só que ao ler o regulamento, me encanei com um polêmico trecho sobre direitos autorais e resolvi não inscrever.


No fim, foram quase 24 mil canções inscritas (de Salvador foram 757) e o pomposo júri de 12 integrantes, entre músicos, maestros, jornalistas e outras personalidades, como o poeta Waly Salomão e o produtor João Araújo (RIP para ambos), tomou a bizarra decisão de premiar, inacreditavelmente, uma merda de música, interpretada por um qualquer, sem nenhum carisma, nem performance (a tranqueira se chamava "Tudo bem meu bem" - veja aqui). Ao ser anunciado como vencedor, levou uma estrondosa vaia, que fez a emissora desistir por completo de promover o campeão, que voltou para o ostracismo seis meses depois do prêmio (leia aqui). Quem sabe se "A Inquietude" teria um destino melhor? Acredito que não.


RECICLAGEM

O Pássaros de Libra naufragou logo após concluir "O Primeiro Equilíbrio" no primeiro semestre do ano 2000 – uma tendência em minha carreira musical que seria repetida com o Orange Poem após finalizar "Sleep in Snow Shape" em 2006 e a Pedradura pós "Universo Telecoteco" em 2008. Como "A Inquietude" não entrou no repertório do Pássaros, pois as músicas já estavam acordadas (e ela não tinha a pegada pop rock do trabalho), foi parar no limbo dos arquivos. 

Letra original digitalizada da segunda versão de "A Inquietude", com mudanças nos versos que a deixaram quase igual à versão que originou "The Unquietness".


Não me lembro precisamente quando fiz as modificações na letra conforme a imagem acima (que a deixaram quase idêntica à versão final de "The Unquietness"), só que deve ter rolado no 2º semestre (tenho uma gravação de "A Inquietude" em junho de 2000 ainda com a letra original). Quando voltei pra música com a nova proposta em inglês a partir da composição de "Last Fly" em agosto (parindo o projeto e banda The Orange Poem), ela continuou hibernando, até o começo de março de 2001, quando fucei meus arquivos para reciclar poemas para os futuros repertórios da laranja.

Sábado, 3 de março, primeiro final de semana após o fatídico carnaval de 2001. Brigas bisonhas com a namorada da época, que se tornou ex de fato. A dor de cotovelo foi tão grande que, à tarde, enquanto ajudava minha mãe a transcrever o blues "Wideness" para a partitura, criei uma boa sequência no violão e cantei por cima dela a frase "I want to kill my past, friend" – que depois se tornou parte do refrão de "When I Wanted to Jump for Death". Gostei.  À noite, consegui reunir ódio suficiente e escrevi um poema depressivo e rancoroso, em que atacava à revelia minha ex. Desenvolvi as ideias melódicas da tarde e compus a raivosa canção "Poison Rose".

Letra original digitalizada de "Poison Rose", cuja harmonia foi aproveitada em "The Unquietness".


Na segunda, 5 de março de 2001, o poema "A Inquietude" se tornou "The Unquietness" (com algumas mudanças como "sonhos" no lugar de "persistência"), no mesmo dia em que "Canção Adeus" se tornou "Farewell Song" (que foi composta no dia seguinte, terça 06) e em que registrei na Biblioteca Nacional o primeiro caderno com músicas do repertório da Orange Poem, o "Shining Life, Confuse World" (mesmo nome do 1º CD, só que nessa leva de registro, além de "The Unquietness", faltaram "One and Three", "The Green Bee", "Child’s Knife" e "Rain", todas presentes no álbum de estreia da laranja, posteriormente registradas).

Na manhã da quarta 14/03, após me entender com o ex-amor e resolver as mágoas acumuladas, fiquei em paz e o rancor acabou (pelo menos naquele dia). Decidi então jogar fora a canção do ódio "Poison Rose". Mas para não perder a melodia, transferi-a brevemente para "Farewell Song". Digo melhor brevíssimo, porque já no dia seguinte, a harmonia em Gm e Bb da raivosa foi eternizada como final épico de outra canção.



COMPUS THE UNQUIETNESS

Quinta-feira, 15 de março de 2001. Fui afinar o violão Alhambra de minha mãe no órgão dela. Queria tocar "Aonde Quer Que Eu Vá" (Herbert Vianna / Paulo César Valle), do Paralamas do Sucesso, que, por muito tempo, foi a única cover que eu tocava no violão – estava apaixonado pela melodia da canção (faixa inédita lançada em 2000 na coletânea Arquivo II), e mais ainda pelo verso "aonde quer que eu vá, levo você no olhar", uma realidade que vivia com as saudades dilacerantes da ex-namorada.

Estava sensibilizado. Não consegui afinar o violão. Fiquei tocando umas notas à revelia no órgão. Acidentalmente o som tomou uma dimensão etérea, viajandona. A inspiração surgiu, repentina, e me fez continuar tocando. As notas se tornaram um belo riff, doce, simples, tocante – é o mesmo da atualidade. Mesmo com o violão desafinado, construí uma harmonia simples em Am para ser base do riff. Duas partes, duas estrofes. E a sincronia exigiu o progressivo – faltava algo mais. Percebi que as notas Gm e Bb da extinta "Poison Rose" poderiam render, criando um ápice à canção, uma mudança de tom. Bingo! – "Farewell Song" sobrou, ficou sem melodia e, uma semana depois, sem criatividade para compor, retomei a harmonia de "Hou" nela.

Composição nova pronta. E a letra? Abri o caderno de versos e acertei na primeira escolha; nascia a linda, emocionante e singela "The Unquietness", que se tornaria uma das músicas mais importantes do Orange Poem (ao lado de "Last Fly", "Wideness" e "Rain"). Fiquei literalmente louco pela composição e praticamente obriguei minha mãe a transcrevê-la para partitura no mesmo dia. À noite, apaixonado pelas recém-compostas "The Unquietness" e "Child’s Knife", decidi que o futuro 2º CD TOP só teria composições minhas, pois Rajasí, Zanom e Fábio tinham estilos distintos do som laranja: o primeiro era alternativo, o segundo só compunha MPB e o terceiro só queria saber de riffs a la Iron Maiden.


NO REPERTÓRIO


Apresentei "The Unquietness" pela primeira vez aos guitarristas TOP (foto ao lado, Zanom e Fábio Vilas-Boas) no domingo 18 de março, num ensaio de cordas que rolou no apartamento do baixista Rajasí Vasconcelos. Às 15h45, eu e Fábio chegamos no prédio na Federação. Quem já estava por lá foi Zanom, a esperar por Rajasí, que ainda não tinha chegado do almoço com a família. O itapuãzeiro finalmente foi apresentado a Fábio, que se recusava a chamá-lo pelo apelido da época, Jesus, pelos motivos de sua fé (da época, pois hoje em dia é outra). Chamava-o de Marcus ou Zanom mesmo – o único na banda a fazer isso; eu só passei a chamar Jesus de Zanom quando a banda acabou em 2007. 

O entrosamento foi harmônico, com o eterno deboche e piadas de Fábio, e as longas risadas e o papo cabeça do intelectual Zanom. Já no ensaio, quando a mãe de Rajasí requisitou a presença do baixista para meditar com a família, ficamos esperando sua volta. Aproveitei e apresentei "The Unquietness". Ambos aprovaram, mas Zanom se emocionou mais, criando inclusive um arranjo vocal do tipo Gal Costa na música "Vapor Barato" para o riff. Curtimos e o acrescentamos na música – durou alguns meses, mas depois foi descartado.

Mirdad em 2001.


Pela manhã da sexta 23/3, muito agoniado por não estar fazendo absolutamente nada (nem trabalhando, nem estudando, aguardando ser chamado via 2ª lista para Facom/Ufba), fui concluir o repertório do futuro 2º CD TOP – começava aqui a romaria de repertórios que foram refeitos zilhões de vezes até ser gravado como "Sleep in Snow Shape" em 2006. Pois as melhores músicas eram as recém-compostas "Child’s Knife" e "The Unquietness" – esta na posição de faixa 03; mas a partir de maio, ela foi escalada pra encerrar o álbum, como faixa 11.

Recuperado da crise do meio de 2001, em que terminei brevemente o Orange Poem e compus "Rain", estava de bem comigo e obra na sexta, 8 de junho, o dia do recomeço. Reformulei o projeto e, ao invés de ter dois repertórios, resolvi transformá-los em um só álbum, com as 15 melhores músicas. Como as canções do então primeiro repertório já estavam ensaiadas e eram consideradas boas, só subi de posição quatro músicas. Dentre elas, o trio de ouro de 2001: "The Green Bee", "Child’s Knife" e "The Unquietness". Pois entraram em "Shining Life, Confuse World" (assim como a minha especial "Rain" neste mesmo dia) nesta sexta 8/6 para nunca mais saírem. 

Trecho inicial da partitura de "The Unquietness", de Emmanuel Mirdad, transcrita de punho por sua mãe Martha Anísia, registrada na Biblioteca Nacional no caderno "Shining Life, Confuse World II".


"The Unquietness" foi registrada na Biblioteca Nacional no final de junho de 2001 no caderno "Shining Life, Confuse World II", junto às canções "The Green Bee", "Child’s Knife", "Rain", "Flowers in My Way" e "At Least a Wish".


DIVISÃO DE SOLOS

Fábio Vilas-Boas era o guitarrista solo da Orange Poem. Zanom só entrou de fato na banda em março de 2001, e foi aceito para ser o guitarrista base. Mas como foi aos poucos mostrando que tinha um enorme talento, uma sensibilidade fina, uma musicalidade ampla, uma pegada rara que unia a transcendência e a precisão de David Gilmour com a visceralidade e a paixão de Jimmy Hendrix e a proximidade e o entendimento pleno com o blues. Era muito desperdício ficar como base. E, devido ao envolvimento de Fábio no projeto, a ponto de sonhar (assim como eu) que a Orange se tornasse uma banda de sucesso mundial, referência pro rock, teria que ser homeopática a inserção de Zanom nos solos laranjas.

Na quinta, 28 de junho, rolou uma reunião entre nós no playground do meu prédio. Depois de conversarmos sobre as novas músicas e os rumos do projeto, coloquei na pauta o assunto polêmico: a divisão dos solos. Como produtor da banda, tinha elaborado previamente e precisava da aprovação dos guitarristas. Apresentei, deixando bem claro o espaço de cada guitarrista nas músicas novas. Eles toparam. Assim, além de ficar solo em "Rain", Zanom ganhou a abertura de "The Unquietness" – o final pesado ficou com Fábio

Close da guitarra de Zanom em 2001 por Mark Dayves.


CONSTRUÇÃO

"The Unquietness" estreou nos ensaios TOP no sábado, 11 de agosto de 2001 – ensaio atípico este 11º. O Orange Poem foi um trio, comigo, Zanom e o baterista Hosano Lima Jr. O guitarrista Fábio furou mais um ensaio, e estávamos na transição do baixista, com a saída de Rajasí e a entrada de Álvaro M. Valle (que no ano anterior foi o primeiro a ser convocado, mas só aí chegou mesmo na banda). Zanom ficou muito irritado com a "romarice" de Fábio, mas foi acalmado pelo jeito "não me aborreço com nada" de Hosano. "The Unquietness" fluiu rapidamente e ficou linda, com solos afetivos de Zanom e Hosano provando sua facilidade enorme em compor a bateria de canções viajandonas – empolgado, até cantei uma versão "A Inquietude", mas foi solenemente reprovada pelos laranjas.

No sábado seguinte, dia 18/08, Álvaro estreou na banda com um baixo surrado, faltando uma corda e com as restantes enferrujadas e subtonadas. Foi a primeira vez que "The Unquietness" foi tocada com a banda completa, sendo a música mais trabalhada deste 12º ensaio TOP. A partir daí, a banda preparou o repertório para a gravação do seu 1º demo. Foram mais oito ensaios até o 20º, no sábado 20/10 (a parte pesada de "The Unquietness", o posfácio vindo de "Poison Rose", só veio a funcionar mesmo no 17º ensaio, dia 1/10).

O baixista Álvaro M.Valle em 2001 por Mark Dayves.


Entre julho e setembro, "Shining Life, Confuse World" tinha quinze músicas e "The Unquietness" era a faixa 08. Mas no dia 13/09, fiz a seleção definitiva das doze músicas que só foram registradas e lançadas profissionalmente em 2005. "The Unquietness" subiu para a faixa 6, mas acabou não sendo gravada no 1º demo, no sábado 27/10. A bela progressiva consumiu um tempo imenso da sessão, tentamos gravá-la seis vezes seguidas e não conseguimos acertá-la (a gravação era ao vivo todo mundo junto). Despediu-se de 2001, o ano do seu nascimento, na quinta, 20 de dezembro, no 24º ensaio TOP, com a seguinte descrição: "encerrou a série pop, executada com uma imensa emoção geral".


A ESTREIA EM PALCOS

Na quinta, 31 de janeiro de 2002, a Orange Poem fez o primeiro show de sua história no bar Café Cultura no Rio Vermelho (extinto há anos!), que só rolou por causa da amizade com o artista plástico Mark Dayves. Por uma bobagem, perdemos a carona da caixa de guitarra emprestada para Zanom, que ficou em Villas do Atlântico, região metropolitana de Salvador. Eu não tinha carro na época e fui arrancar do sono o meu amigo Mark, aplicando um desesperado "se você não me ajudar a banda não vai tocar hoje". Mesmo abatido e com diarreia, Dayves provou sua amizade e foi com seu carro buscar a bendita caixa num calor escaldante de meio-dia de verão. Sem a caixa, Zanom não tocaria e, sem ele, a banda não tocaria de jeito algum.

Estreia em show da The Orange Poem em 31/01/2002 - Foto: Leila K.


Noite. Cada músico ajeitou seu instrumento em momentos distintos, sem nenhuma pressa e o placo minúsculo do Café Cultura não coube os quatro das cordas. Álvaro ajeitou seu microfone e o baixo fora do palco, que estava quase desabando. A bateria também era precária, mas Hosano preferiu se virar que reclamar. O bar era um ovo e uma verdadeira sauna. Perfeito representante do underground, ótimo para a estreia do poema laranja – e também minha estreia em palcos (só Álvaro sabia disso).

Eu não estava nervoso, mas ao perceber que a plateia era formada só por pessoas queridas e muitas desconheciam o trabalho e nem gostavam de rock, rolou uma aflição; tocar para desconhecidos era muito fácil, mas não corresponder às expectativas das pessoas que você ama é o pior fracasso que pode existir. Toquei o barco. E Álvaro mangueou. 

Já na primeira música, "Last Fly", o baixista esqueceu por completo as notas e ficou catando-as a esmo, com todo mundo percebendo – foi assim em todas as músicas. A sorte foi que o guitarrista Fábio estava inspiradíssimo, com solos alucinantes, e eu mandei ver, emocionando geral o público, a ponto do amigo Mark Dayves se levantar no bis de "Last Fly" e dançar rodopiando, como se voasse. "The Unquietness" estava no repertório dessa noite histórica, em que Zanom apresentou seu jeitão isolado de tocar, num mundo à parte, e Hosano se virou com a péssima acústica do bar e a ausência quase completa de voz no retorno.

Zanom sola em "The Unquietness" no 28º ensaio TOP em 20/04/2002.


A VERSÃO DO 28º ENSAIO

Álvaro M. Valle desistiu de ser o baixista do Orange Poem. Antes de encontrarmos Artur Paranhos, ralamos um pouco, e um amigo de Fábio chamado Paulo Suzart assumiu o baixo em um único ensaio. Sábado, 20 de abril de 2002, 28º ensaio TOP no finado estúdio Aquarius, no Rio Vermelho. 17h10, menos de uma hora pra terminar, após muita insistência, convenci Herbert a filmar a banda, só pra registro mesmo. 

Gravamos cinco músicas em uma exibição surpreendente de Zanom. O itapuãzeiro estava inspirado e simplesmente gravou um solo emblemático no começo de "The Unquietness", inédito, que fundou um paradigma – por anos ele não conseguiu reproduzir fielmente. Pois durante um bom tempo a gravação dessa música no 28º ensaio serviu como parâmetro, tanto que a maior parte desse solo foi aproveitada na gravação final em 2004. Não só ele, como as pontas com o wah-wah no estilo "No Quarter" do Led Zeppelin durante a parte cantada e os solinhos para a retomada da voz pós-riff. E, de todas as tentativas de gravar "The Unquietness" em demos e DVD demos, a única que prestou nessa fase embrionária pré-gravação profissional foi essa versão.

Baixista Artur Paranhos resolveu o problema dos baixistas da Orange Poem - Foto: Mark Dayves em 2003.


APAGA A LUZ!

Algumas descrições de "The Unquietness" no diário TOP: "apagaram a luz do estúdio, deixando apenas a luz que ficava bem em cima da cabeça de Hosano, e o mundo virou de ponta-cabeça", "cada vez mais subia de produção e se tornava um dos destaques para todos os componentes, tornando difícil o retorno à Terra" e "o TOP encerrou o show [2º show em 25/10/2002, na Facom/Ufba] com uma belíssima execução da imortal". 

Incorporada ao repertório em 2001, "The Unquietness" se tornou um xodó democrático e todos os músicos gostavam. E eu arranjei uma mania: nos ensaios, apagava a luz na hora dela, para estimular a viagem psicodélica. Aí, no final do 3º show TOP (que rolou no saudoso Havana Bar em 30/04/2003), a plateia tava calibrada pela energia do rock’n’roll promovida por duas execuções nervosas de "One and Three" e "Wideness", e eu fiz a incrível burrice de, ao invés de encerrar ‘pra cima’ com outra música feroz, pedi a lombra de "The Unquietness", que contrariou de imediato o público excitado. Além disso, botei em prática a maluquice de apagar as luzes. 

The Orange Poem no 3º show em 30/04/2003.
Foto: Thiago Fernandes.


A música sempre começou comigo só ao violão. Tocando as primeiras notas, pedi para apagarem as luzes do Havana Bar. Obviamente fiquei sem resposta. Baixou o Tim Maia em mim: não mudei a harmonia, continuando a tocar o Am e G ad æternum e a bater firme –  "Daqui eu não saio enquanto não apagarem as luzes". Uma parte do público começou a gritar "toca, toca, toca", os músicos laranjas foram se irritando e o produtor do show Rogério Alvarenga conseguiu desligar as luzes do palco, mas nem todas. O clima ficou chato e aí dei sinal para a música entrar de fato, para o início da viagem. 

Viagem furada. Foi a pior música da noite, com erros bobos, evidentes, como o wah-wah em outro tom que um desatento Zanom apavorou e Fábio embolou tudo no solo final. A banda encerrou o 3º show sem aquela energia laranja que a tinha consagrado minutos antes. Mesmo com esta lambança, eu voltaria a pedir para apagar a luz em ensaios e shows em 2004 e 2005.

The Orange Poem toca "The Unquietness" no 4º show TOP em 18/07/2004 - Foto: Rui Rezende.


GRAVAÇÃO

A Orange Poem esquentou a gravação profissional do seu 1º CD, "Shining Life, Confuse World", na série de sete shows do "Agente Laranja Gueto Cultural", produzida por mim (a estreia na produção cultural) entre julho e outubro de 2004, no finado Tangolomango Bar na Pituba. O xodó "The Unquietness" sempre presente, mas sem nenhuma exibição espetacular. Melhor foi a recomendação que dei no 4º show TOP em 18/07/2004: "é pra fecharem os olhos e viajarem pra bem longe, mas é para dentro de vocês mesmos, por dentro dos teus medos, tuas correntes e tuas prisões, para dentro do que você há muito tempo esconde".

"The Unquietness" começou a ser gravada pela bateria; Hosano Lima Jr. mandou ver, execução linda (das melhores do CD, com destaque para o aro da caixa, resgatado na mixagem final de 2014), registrada no sábado, 27 de novembro de 2004, no primeiro endereço do estúdio Casa das Máquinas, de Tadeu Mascarenhas: Rua Professora Almerinda Dultra, nº 19.

O guitarrista Fábio Vilas-Boas e o baterista Hosano Lima Jr.
Fotos: Alexandre Strube e Jamille Magalhães.


O guitarrista Fábio Vilas-Boas estreou no disco na 2ª sessão, último dia de novembro, uma terça. A primeira pedida por ele? "The Unquietness", seu grande xodó. Fábio gravou o seu tão eficiente e característico teclado-guitarra, criando a cama da canção, além de alguns solos e pontas psicodélicas. 

Terça-feira, 07 de dezembro de 2004, 4ª sessão de gravação, a estreia do guitarrista Zanom no 1º CD TOP. Assim como Fábio, pediu "The Unquietness" para começar, onde ficou gravando por um bom tempo, várias bases distintas, até definir uma linearidade – Tadeu comentou: "tem muita guitarra aí" (no final foram 11 canais de guitarras laranjas para mixar, uma pedreira boa). Na sequência, sagrou um ótimo solo inicial que, segundo o próprio, foi o melhor que já fez (uma evolução maravilhosa da sua performance do 28º ensaio). Tadeu deu uma força, colocou um delay ideal do PC e o resultado ficou excelente, aprovadíssimo. 

O guitarrista Zanom - Foto: Jamille Magalhães.


Pra concluir sua participação na bela psicodélica, Zanom foi gravar a guitarra base com distorção do final – merda; ele se embolou, consumindo muito tempo de estúdio. A justificativa (mais do que justa) dele: "sem metrônomo é foda!" (o 1º CD TOP foi gravado assim por uma péssima decisão minha). Havia um solo de Zanom no início do peso que foi abolido por sugestão de Tadeu, acatada por mim, questionada pelo itapuãzeiro. Para não perder um arranjo seu para a apoteose da canção, Zanom sacou da cartola uma frase deliciosa com slide que tinha sido pensada em junho (no 59º ensaio TOP) e gravou, surpreendendo a mim e a Tadeu. Que beleza, perfeito, perfeito!

Estranhamente o baixo foi gravado depois das guitarras no 1º CD TOP (o que só aumenta o mérito de Hosano, que gravou toda a bateria sem o groove do baixo, apenas com meu violão base e algumas guitarras bases de Fábio e Zanom). Isso porque o baixista Artur Paranhos teve uma crise muito séria no seu relacionamento da época que o tirou por completo do eixo. Só conseguiu estrear no álbum no sábado, 18 de dezembro de 2004, 6ª sessão. E assim como pra Fábio e Zanom, qual foi a primeira? 

O baixista Artur Paranhos - Foto: Alexandre Strube.


"The Unquietness" exigiu paciência do músico e da produção. O arranjo sussurrado da parte psicodélica, tocado de forma extremamente sutil, sempre foi excelente na execução de Artur – nenhum outro baixista conseguiu tocar com a mesma intenção precisa para a laranja. Por isso, foi preciso regravar várias vezes, até atingir o ponto preciso da vibração – processo semelhante aconteceu anos depois em "Neither Gods, Nor Devils", só que muito mais rigoroso.

Antes do fabuloso ano de 2004 acabar, gravei o violão 12 cordas em "The Unquietness" na quarta, 29 de dezembro. Na pré-produção do disco, Tadeu tinha condenado meu violão, que não afinava direito as cordas. O jeito foi o engenheiro de som pedir emprestado o do amigo cantor e compositor Alex Pochat, já que eu não conhecia ninguém com esse instrumento e não tinha grana pra comprar outro. Pois o que estava programado para 9ª sessão do álbum foi a gravação de oito músicas. Como meus dedos estavam destreinados (muito tempo trabalhando como produtor e quase nunca músico), quase sem calos, o jeito foi gravar em ordem crescente: da menor exigência de técnica à pior bagaça de pestana. 

O violonista Mirdad - Foto: Alexandre Strube.


No início, eu estava bem nervoso, já que era a minha primeira vez gravando num esquema profissional como instrumentista, tendo que acompanhar o violão guia já gravado e fora da condição de produtor – tinha que confiar na competência de Tadeu, que iria dirigir. Gravei então quatro músicas e pedi uma pausa para descansar os dedos, que já estavam no bagaço. A parada foi rápida, Tadeu não deu folga, preocupado com o horário. "The Unquietness" foi uma batalha, a que consumiu mais tempo, por causa dos reajustes constantes de sincronia com o violão guia (olha a ausência do metrônomo fodendo mais uma vez!). 

Desatento e inexperiente, antes de terminar a sessão, mexi na posição do instrumento, mudando o som por completo. Não houve jeito de recuperar o timbre, ou seja, tive de regravar tudo de novo, destruindo mais ainda os dedos. Ao fim, concluí "The Unquietness" com os dedos dilacerados.

Mirdad cantando em 2004 - Foto: Alexandre Strube.


Já em 2005, terça, 11 de janeiro, encerrei a gravação da voz do álbum. Assim como no violão, "The Unquietness" foi uma ralação tremenda, a penúltima que gravei. Eu tinha um problema feroz com a afinação nela, além do timbre. Consumi um tempão nela, o maior tempo gasto por mim em gravações laranjas. E a única coisa que prestou foi o grito do final. Pois esse fracasso foi tão retumbante pra mim que eu sempre considerei que minha voz estragou o xodó. 

Eu mesmo não conseguia ouvir a canção e ela esteve fora das coletâneas que fiz nos anos pós-término da banda. Ou seja, depois de um percurso que começou em 2001, e num processo onde todos os músicos brilharam, foi logo eu quem detonou a eternização de "The Unquietness". Por outro lado, a sincronia operou sua sempre eficiente afirmação: essa falha no xodó foi o principal argumento pr’eu sair do vocal laranja e desenvolver a nova proposta de vários vocalistas competentes.

A primeira música mixada do 1º CD TOP foi "The Unquietness". A manhã da quarta 12 de janeiro foi inteiramente usada para ela, que tinha vários canais de guitarra a ajustar, além de basear a mixagem da bateria para todo o álbum. Só que o resultado não ficou 100%, porque eu me passei e me esqueci da base de Fábio na parte pesada e todos os solos que ele gravou neste final ficaram muito confusos, por conta do pedal usado, e teriam de ser regravados. Minha voz falhou também num trecho. E eu ainda engoli a pulso o violão que gravei, que não teve uma execução segura e sempre me incomodou – não tinha o menor saco ou vontade de refazer, todo aquele processo de pedir o violão emprestado de novo e tal.

Fábio grava "The Unquietness" em 2005.


Terça, 25 de janeiro, Fábio de volta ao estúdio para algumas regravações. Dentre elas, "The Unquietness". O guitarrista ficou muito feliz e bastante surpreso ao ouvir o som laranja mais ou menos pronto, já que na época em que gravou, só tinha o violão, voz base e a bateria de Hosano sem mixagem. Ele aprovou tudo. E no solo final do xodó, arrancamos o couro dele. Fábio gravou vários takes, com intenções diferentes, e no final das contas, ficava parecendo a mesma coisa – ele não encontrava a mão certa.

Até que, depois de muito ouvir "seja mais calmo, notas mais claras, mais melódicas", o guitarrista acertou um fraseado que ficou quase suficiente. Eu tive um estalo, peguei um vidro de remédio e pedi pra ele deitar a guitarra Crafter e tocá-la como slide a la Gilmour – lembrei-me do belo trabalho que Zanom fez com slide no álbum. Fábio criou adoidado e o estalo passou para Tadeu, que juntou as melhores partes dos dois solos num frank que funcionou muito bem. Eu regravei o trecho errado da voz e a sessão terminou.

Tadeu Mascarenhas, o engenheiro de som do álbum "Shining Life, Confuse World".


A primeira mix foi concluída na quarta 26/01, o álbum foi analisado pelos músicos, com várias anotações, "The Unquietness" foi mexida na segunda 14/02 (volume maior para a guitarra de Fábio em algumas partes) e entregue como faixa 08 de "Shining Life, Confuse World", numa levada muito interessante do álbum, com "Wideness" e "Rain" antes e "Dubious Question" depois – o erro meu foi colocar "A Song to You, My Home" e "Diet of Dust", duas músicas bem fraquinhas hoje descartadas, como faixas 02 e 03, após a mãe "Last Fly".

Antes de prensar o álbum, tive a ideia de fazer uma audição para amigos, que encontraram alguns erros graves de pronúncia (que acabaram não encontrando outros erros graves de gramática, que acabaram sendo registrados e prensados no 1º CD TOP). Então, quase seis meses depois de ter finalizado a voz, voltei ao Casa das Máquinas na sexta, 8 de julho. Nessa época do 2º semestre de 2005, já estava tocando o processo de prensagem do álbum junto à CDBA.



Cansado e com dor de cabeça, tive de me virar – só tinha um restinho de tempo à tarde e início de noite para sanar os problemas, ou senão o álbum seria prensado assim mesmo, errado e no puro vexame (e foi, com os erros não detectados em 2005 – só fui saber disso bons anos depois). Depois de algumas cabeçadas e frustrações, finalmente encontrei o timbre da gravação original, consertando "The Unquietness" – esforço a toa, pois continuou muito ruim a minha voz na canção.



LANÇAMENTO

A primeira música da Orange Poem tocada no rádio foi o xodó "The Unquietness" (claro que já tinha tocado antes os demos na rádio universitária Facom FM, mas ninguém ouvia o nosso experimento), no quadro "Janela Baiana" do programa Rock’n Geral da Educadora FM. Quem escolheu foi o guitarrista Fábio Vilas-Boas. Eu trabalhava como estagiário na rádio, mas não foi por isso que tocaram e entrevistaram a gente (a Orange ainda faria o programa Outros Baianos de Tom Tavares). A Educadora FM tem a tradição de tocar boa música, independente de jabá e indicações duvidosas – sempre tive muito orgulho de trabalhar numa casa assim.



O espaço no programa costumava tocar duas músicas, mas como o nosso som progressivo de canções acima de 5 min não dialogava bem com o rádio. Por isso, só tocamos "The Unquietness" (no programa Outros Baianos, de uma hora, tocamos várias músicas), que representava a laranja, como o próprio Fábio sintetizou: "Ela é viagem que depois pesa, bem o nosso som". O motivo dessa participação foi divulgar o show de lançamento do nosso 1º CD, "Shining Life, Confuse World", que aconteceu numa sexta, 23 de setembro de 2005, no finado World Bar na Barra – começo da série de quatro shows chamada Laranjada Rock.

Noite. Depois do show de abertura com a banda Vinil 69, começamos o show com "Last Fly", num repertório que seria fiel à ordem do CD e mais os covers. Depois veio uma tímida "A Song to You, My Home", uma bem recebida "Diet of Dust" e a sempre eficiente "Foxey Lady", cover de Jimi Hendrix. O show morreu um pouco com "Child’s Knife" (comecei a duvidar se ela poderia ser um single mesmo) e aí quebrei o repertório, evitando o peso de "The Green Bee" pelo bar estar meio vazio. Optei então por "Wideness" que, bem executada, arrancou aplausos e criou um bom clima para "Rain" (cheguei até a fazer o grito gutural do final, uma raridade). Nesse clima relax psicodélico, pedi "The Unquietness". O baixista Artur Paranhos, presente na plateia, foi convidado ao palco.

The Orange Poem com o ex-baixista Artur Paranhos tocando "The Unquietness" no lançamento do CD em 23/09/2005.


Depois de faltar ensaio, ausências diversas (não pode tocar no show em Maragojipe) e quase não ter tempo pra banda devido à carreira de músico em várias bandas, ficou insustentável a permanência de Artur na Orange Poem, até que na segunda, 29 de agosto de 2005, ele desligou-se da laranja (no mesmo dia em que as mil cópias do 1º CD chegaram em minha casa). Foram três anos e quase quatro meses de banda, com 43 ensaios, 9 shows, reuniões e gravações diversas de demos e uma profissional; o baixista que mais tocou com a gente (tivemos vários, como Rajasí Vasconcelos e Álvaro M.Valle, etc). E agora, às vésperas do lançamento do 1º CD e do real lançamento profissional da banda, com site e imprensa, tava fora. Que desperdício!

Quem quebrou o galho do poema foi o baixista Fabrício Mota, amigo de longa data de Zanom (tocavam juntos na banda Solo Pedregoso), que tocou na camaradagem, sem cobrar cachê, mas também sem ter gasto algum (estreou no 80º ensaio em 18/08/2014). Mas, na hora de "The Unquietness" no show, aproveitando a honrosa presença do amigo Artur, convidei-o para o palco. Uma grande emoção estar de novo com o amigo num palco. Feliz, ele tocou muito bem. Fábio, dias depois, resumiu: "oh, véi, eu senti naquela hora a energia laranja com Artur se completando". 

The Orange Poem no programa Soterópolis da TVE de 15/10/2005.


LARANJA NA TV

Sete de outubro de 2005. Começo os meus vinte e cinco anos. Qual é a sensação que predomina ao se fazer 25? Imediatamente aquele clichê de ¼ de vida a menos (pretensioso, já que chegar aos 100 anos é difícil). Na real, a glória de ter sobrevivido os percalços da infância e os problemas e vícios da adolescência, o ponto final de minha escalada pós-depressão de 1995; 10 anos depois e eu consegui construir exatamente a pessoa que planejei ser quando me livrei do suicídio predestinado (que quase foi cumprido). Estava pronto para o maior desafio: o revolucionário ano de 2006 (chamava de "revolução" o êxodo para Londres com a Orange Poem e foi exatamente o que não rolou – desisti para viver um grande amor).

Pois sete de outubro de 2005 caiu numa sexta que, à noite, rolaria o 14º show TOP dentro do Laranjada Rock ("The Unquietness" abriu o show que foi uma farra retada, um niver sensacional!). Pela manhã, fazia um belo dia de sol, quente e genuinamente baiano. Às nove da matina, eu já estava no World Bar, organizando as arrumações para a gravação da entrevista para o programa Soterópolis, da TVE, a primeira aparição da laranja na TV (até a data deste post, única). Márcio Pipoca, o brother do som do bar, também chegou cedo, por camaradagem. Tinha trabalhado até tarde ontem, e veio de virote dar um auxílio providencial à gravação. Aos poucos, Zanom, Fábio e Hosano foram chegando.

The Orange Poem no programa Soterópolis da TVE de 15/10/2005.


Quando estávamos todos a postos no palco, a equipe da TVE chegou. Decidimos gravar trechos rápidos de algumas músicas. Dentre as escolhidas, "The Unquietness" (que acabou abrindo a matéria quando veiculada). Gravamos as músicas duas vezes cada, primeiro em plano aberto, e depois em plano fechado. Um calor miserável, somado ao forno da luz incandescente. Depois do som, a entrevista. Sentados na parte das mesas e palha do bar, em um bom cenário, todos suados, tentando se virar da melhor forma sem nenhuma maquiagem. A estagiária, um pouco perdida, e eu tive de dirigir a matéria (algo que se tornou rotineiro a partir daí).

A matéria foi ao ar no programa Soterópolis da TVE no sábado, 15 de outubro. Tava rolando um almoço de aniversário de 69 anos de minha querida Tia Xará. Na casa dela, assisti com minha família a exibição da primeira matéria televisa com o Orange Poem. Foram apenas três minutos, e ficaram faltando as falas de Fábio e Hosano, mesmo assim, foi muito emocionante me ver na TV pela 1ª vez, com a verdade de algo que eu queria muito. Logo quando terminou, parabenizado pelos familiares, liguei para Zanom, que manifestou sua felicidade também. Os trechos de músicas selecionados foram "The Unquietness", "Rain" (a mais utilizada) e "Diet of Dust". Fábio não assistiu e Hosano curtiu um pouco também. 


EM PORTUGUÊS

Dois mil e seis chegou e a decisão foi gravar um novo disco. Como assim? Não acabaram de lançar um? Desisti de promover a obra por causa do fracasso do Laranjada Rock, preferi gravar um novo para chegar em Londres mais bem gabaritado. Pois o ano passou, não trabalhamos mais as músicas do 1º repertório, a viagem foi cancelada e a banda acabou em março de 2007. E ao invés de ir pra gaveta, "The Unquietness" voltou a ser "A Inquietude", na leva de transformações das músicas laranjas para português.

Pra mim seria uma oportunidade de salvar a péssima gravação da voz na xodó. Festival da Educadora FM surgindo, resolvi gravá-la (junto a "El’eu", versão para "Madness" do 2º CD TOP) para concorrer, só substituindo a minha voz e aproveitando os arquivos já gravados (opa, sete anos atrás, já antecipava o que seria do futuro do Orange Poem a partir de 2014). De novo, Casa das Máquinas de Tadeu Mascarenhas. E o resultado? Uma porcaria pior ainda. Tadeu condenou a gravação e só salvou "El’eu" (que ganhou o recitar de meu pai Ildegardo Rosa e acabou entrando nas 50 selecionadas, sendo executada na rádio, mas perdeu na seleção seguinte, para as 14 do CD do Festival em 2007).

Aproveitei algumas músicas transformadas, como "Anti-Plástico" (derivada da melodia de "Dubious Question" e letra de "Neither Gods, Nor Devils") e "Petecas" (derivada de "Cuts"), e montei uma nova banda, chamada Pedradura. Só que como a última versão de "A Inquietude" ficou horrorosa (antes ter utilizado a primeira do ano 2000), nem entrou no bolo doido e voltou a ser "The Unquietness" – agora sim, arquivada. 

Mirdad, Rodrigo Pinheiro e Tadeu Mascarenhas na 1ª sessão de gravação do EP Unquiet no final de março de 2014.


VERSÃO FINAL

O projeto laranja voltou em 2014. Precisamente, em dezembro de 2013, quando o amigo cantor e compositor Glauber Guimarães finalmente topou meu convite para regravar canções laranjas, algo que vinha tentando há anos – quase rolou em 2012, mas a grana não foi suficiente. Pois gravamos o EP Ground, que foi lançado virtualmente na manhã da quarta 15 de janeiro de 2014. Na tarde deste mesmo dia tão importante pra mim, via telefone, convidei o amigo cantor e guitarrista Rodrigo Pinheiro, o John da Besouros do Sertão (banda do laranja Hosano Lima Jr. e outros amigos que produzi em 2004 e 2005), para gravar o próximo EP. 

Ele curtiu o convite e pediu pra ouvir as músicas. Enviei cinco para ele, sendo que uma foi uma intimação: vai ter gravar "The Unquietness" de qualquer jeito! De todas as músicas laranjas gravadas nos dois discos, esta era a que mais precisava ser resgatada – todas as outras passavam, muito mal ou meeiras, mas até que poderiam ficar do que jeito que foram arquivadas; porém, eu tinha estragado o xodó e isso foi um crime que eu tinha de me redimir.

Grupo folk Sad Child reunido na sala da casa da família de Rodrigo John em 09/10/2006 - Foto: Mirdad.


Mais de um mês depois, John apareceu em Salvador (médico, estava morando em Barreiras, oeste da Bahia, longe pra mais de 800km da capital) e nos reunimos na sala da casa de sua família na quarta, 26 de fevereiro de 2014, como nos velhos tempos do Sad Child (grupo folk voz e violão formado por nós, Glauber e outros músicos em 2006, reunidos na mesma sala na foto acima). Há anos que não via pessoalmente o amigo.

Ensaiamos "The Unquietness" com vontade, ele tinha curtido a canção e estava disposto a gravá-la – foi a única que ele tinha ouvido direito e ensaiado em casa. Pô, uma música em um mês? Devia tá uma correria louca em Barreiras! Apresentei então "Homage" e ele topou. Apresentei "Lost Mails" e "8/8/88", mas ele pulou fora, argumentando que não teria tempo hábil para memorizar a canção até a gravação no final do mês seguinte (ainda bem que ele não topou "Lost Mails", porque a gravação feita por Nancy Viégas no EP Wide pra mim é a que eu mais gostei até agora, a que mais me sensibilizou). O alívio foi que ele topou "Neither Gods, Nor Devils" e fechou assim o repertório do EP Unquiet com três músicas – claro que a minha expectativa era toda para a gravação de "The Unquietness".

Rodrigo Pinheiro, vulgo John, grava a voz em "The Unquietness" em 28/03/2014 - Foto: Mirdad.


Sexta-feira, 28 de março de 2014, tarde. Acompanhado pela amada cantora Ana Gilli, fui buscar o amigo médico-cantor em casa. Aparentando nervosismo, entrou no carro dizendo que não teve tempo pra ensaiar, que tava num corre doido, que ia fazer show à noite e tava cansadão e etc. Um baldaço de água fria, mas mantive a calma e fui dando força a ele, ajudado por Anagê. A questão pairou no ar: será que ele vai dar conta? Nunca tinha feito uma gravação profissional antes. E, na real, não fizemos nenhum ensaio (a reunião de um mês antes foi mais pra definir as músicas que ensaiar mesmo).

"The Unquietness" abriu a sessão. E foi uma batalha para encontrarmos a interpretação precisa. Tadeu Mascarenhas, que não conhecia a voz de Rodrigo, aprovou o belo timbre do meu amigo. E, com muita psicologia e direção, tiramos o melhor do John. A satisfação de ouvir a minha querida canção finalmente salva me trouxe uma alegria imensa! Tadeu não gravaria nela (gravou nas outras duas do EP Unquiet) e em duas sessões, quarta e quinta 9 e 10 de abril, concluímos a mix (foi uma ralação danada, com destaque para o aro da caixa de Hosano, resgatado e apresentado com brilho nessa nova mix, e a mudança no início, em que tirei o violão, deixando apenas as guitarras). Passamos uns dias avaliando e no dia 14 de abril, uma segunda, o EP Unquiet ficou pronto, lançado virtualmente no dia 22/04 para eternizar a querida "The Unquietness" com todo o brilho que sempre mereceu. Parabéns, meu amigo John, você arrebentou!

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