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Sete passagens de Guy de Maupassant no livro de contos As grandes paixões

Guy de Maupassant


"(...) diante da cerveja espumosa, trazida pelo garçom apressado, sentimo-nos tão abominavelmente solitários que uma espécie de loucura se apodera de nós, uma ânsia de partir, de ir para outro lugar, não importa onde, para sair dali, diante daquela mesa de mármore sob o lustre brilhante. Percebemos de súbito que estamos de verdade e sempre e por toda a parte sozinhos no mundo, mas que nos lugares conhecidos o convívio familiar proporciona apenas a ilusão da fraternidade humana. Nestas horas de abandono, de isolamento nas cidades longínquas é que pensamos com largueza, clareza e profundidade. É então que abarcamos a vida num só olhar, fora da ótica da esperança eterna, fora da enganação dos hábitos adquiridos e da expectativa da felicidade sempre sonhada."


"O povo é um rebanho imbecil, ora estupidamente paciente, ora ferozmente revoltado. Dizem-lhe: 'Divirta-se' e ele vai se divertir. Dizem-lhe: 'Brigue com o vizinho' e ele vai brigar. Dizem-lhe: 'Vote no imperador' e ele vota no imperador. Depois lhe dizem: 'Vote pela república' e ele vota pela república (...) Aqueles que dirigem o povo também são uns tolos. Mas, em vez de obedecer a homens, obedecem a princípios que só podem ser ingênuos, estéreis e falsos, pelo simples motivo de que são princípios, isto é, ideias reputadas certas e imutáveis, neste mundo em que não se está seguro de nada, pois a luz é ilusão e o ruído outra ilusão."


"De onde vêm estas influências misteriosas que transformam nossa felicidade em desânimo e nossa confiança em angústia? Parece que o ar, o ar invisível, está cheio de Forças desconhecidas de que sentimos a vizinhança misteriosa (...) Tudo o que nos cerca, tudo o que vemos sem olhar, tudo o que tocamos sem apalpar, tudo o que encontramos sem distinguir, tem sobre nós, sobre nossos órgãos e, por intermédio deles, sobre nossas ideias, sobre nosso próprio coração, efeitos súbitos, surpreendentes e inexplicáveis (...) Como é profundo o mistério do Invisível. Não podemos sondá-lo com nossos míseros sentidos, com nossos olhos que nem sabem perceber nem o muito pequeno nem o muito grande, nem o muito perto nem o muito afastado, nem os habitantes de uma estrela nem os habitantes de uma gota d'água..."


"(...) Quando um homem é bastante louco para propor a uma mulher casar-se com ele em primeiro lugar e se tornar sua amante depois, isto prova que ele a ama (...) ELA – Ah! Não vamos confundir. Casar-se com uma mulher prova amor ou desejo, mas tomá-la como amante só prova... desprezo. No casamento, aceitam-se todos os encargos, todas as dificuldades e todas as responsabilidades do amor. No segundo caso, deixa-se todo o ônus ao legítimo proprietário e fica-se apenas com o prazer, com a faculdade de desaparecer no dia em que a pessoa deixar de agradar (...) ELE – Minha cara amiga, você raciocina mal. Quando se ama uma mulher, não se deveria casar com ela, porque ao se casar fica-se seguro de que ela o enganará como você fez comigo. A prova está aí. Enquanto isto, é indispensável que uma amante permaneça fiel ao amante com todo o encarniçamento com que ela se põe a enganar o marido (...) Se um homem deseja que se crie uma ligação indissolúvel com uma mulher, faça-a casar-se com outro. O casamento é um fio que se pode cortar à vontade. Torne-se amante daquela mulher: o amor livre é uma corrente que não se rompe."


"(...) nosso olho, senhores, é um órgão tão elementar que mal pode distinguir o que é indispensável à nossa existência. Aquilo que é pequenino ou grande lhe escapa. Ele ignora bilhões de animaizinhos que vivem numa gota d'água. Ignora os habitantes, as plantas e o solo das estrelas vizinhas. Não vê mesmo o transparente (...) O homem não vê os corpos sólidos e transparentes que existem em todos os lugares. Não vê o ar de que nos alimentamos, não vê o vento que é a maior força da natureza, que derruba os homens, abate edifícios, desenraíza as árvores, levanta o mar em montanhas d'água que abatem falésias de granito (...) Não é nada espantoso que o homem não possa perceber um corpo novo, a quem falta sem dúvida a única propriedade de deter os raios luminosos."


"(...) Trata-se de uma das coisas encantadoras da vida – aquela simpatia física instantânea nascida de um encontro, leve e delicada sedução que se sente ao roçar uma pessoa nascida para nos agradar ou para ser amada pela gente. Amada pouco ou muito, o que importa? Está em nossa natureza corresponder ao secreto desejo de amor. Desde a primeira vez que se percebe aquele rosto, a boca, os cabelos o sorriso, sente-se que a sedução nos penetra com uma alegria doce e deliciosa, uma espécie de bem-estar, e o despertar repentino de uma ternura ainda confusa impele na direção daquela mulher desconhecida. Parece que ela possui um apelo a que se corresponde, uma atração que solicita, como se a conhecesse há muito e se soubesse o que ela pensa."


"Ela continuava imóvel, o olhar espantado, nem procurando entender, tanto suas ideias rodopiavam, como se pressentisse a aproximação de um grande perigo. Ele esperou um segundo e depois continuou:
– Uma granja sem patroa não pode continuar, mesmo com uma criada como você.
Calou-se, sem saber mais o que dizer. Rose o olhava com o ar espantado de uma pessoa que se acredita diante de um assassino e se prepara para fugir ao menor movimento dele.
Enfim, ao cabo de cinco minutos, ele perguntou:
– E então, não agrada você?
Ela respondeu com a fisionomia triste:
– O quê, patrão?
– Mas se casar comigo, por Deus!"



Presentes no livro de contos "As grandes paixões" (Record, 2005), de Guy de Maupassant, tradução de Léo Schlafman, páginas 289, 257-258, 248-249, 387-388, 243-244, 393-394 e 220-221, respectivamente.

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