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Mayombe, de Pepetela — Parte 01

Pepetela
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez"


"Os homens gostam de se flagelar com o passado e nunca se sentem contentes sem o fazer. É a incapacidade de pôr uma pedra sobre um facto e avançar para o futuro. Há outros, no entanto, os que não sabem gozar a vida, que só veem o futuro. Incapacidade de sofrer ou gozar uma situação. Se sofrem, consolam-se, pensando que o amanhã será melhor. Se são felizes, temperam essa felicidade pela ideia de que ela acabará em breve. Eu vivo o presente; quando faço amor, não penso nas vezes em que não encontrei prazer, ou que será necessário lavar-me a seguir"


"Criança ainda, queria ser branco, para que os brancos me não chamassem negro. Homem, queria ser negro, para que os negros me não odiassem. Onde estou eu, então? A minha vida é o esforço de mostrar a uns e a outros que há sempre lugar para o talvez"


"A mata criou cordas nos pés dos homens, criou cobras à frente dos homens, a mata gerou montanhas intransponíveis, feras, aguaceiros, rios caudalosos, lama, escuridão, medo. A mata abriu valas camufladas de folhas sob os pés dos homens, barulhos imensos no silêncio da noite, derrubou árvores sobre os homens. E os homens avançaram. E os homens tornaram-se verdes, e dos seus braços folhas brotaram, e flores, e a mata curvou-se em abóboda, e a mata estendeu-lhes a sombra protetora, e os frutos. Zeus ajoelhado diante de Prometeu. E Prometeu dava impunemente o fogo aos homens, e a inteligência. E os homens compreendiam que Zeus, afinal, não era invencível, que Zeus se vergava à coragem, graças a Prometeu que lhes dá a inteligência e a força de se afirmarem homens em oposição aos deuses. Tal é o atributo do herói, o de levar os homens a desafiarem os deuses.
Assim é Ogun, o Prometeu africano"


"Compreendi que não são os golpes sofridos que doem, é o sentimento da derrota ou de que se foi covarde. Nunca mais fui capaz de fugir. Sempre quis ver até onde era capaz de dominar o medo"


"O Comissário riu. Um riso juvenil, em que todos os músculos participavam no esforço. Sem Medo, não. O riso de Sem Medo parecia vir muito do fundo e soltava-se, numa gargalhada atroadora. O riso do Comissário vinha da pele, o seu vinha do ventre, pensou Sem Medo. Seria a idade que levaria o riso a enterrar-se no corpo? Como rirei dentro de dez anos? Um risinho baixo, sem mexer os lábios, sons roucos libertando-se duma garganta velha ... E dentro de vinte anos? Aos cinquenta e cinco? Ora, nessa altura já não viverei, certamente. O riso sairá duma cova, um metro abaixo da terra, mais profundo portanto, e fará estremecer a estela* com o nome e as datas. Se estela houver"

*Placa funerária


"Andaram mais meia hora e saíram da mata, para uma montanha sem árvores, só com capim. A isso chamavam deserto. Tudo é relativo. Para um homem habituado a ter folhas até cinquenta metros acima da cabeça, qualquer terreno em que só encontra capim é um deserto. Da mesma maneira, a savana seria um Mayombe para o camelo"


"– É curioso – disse Sem Medo – que estejamos para aqui a discutir Freud, quando nos encontramos em plena confusão política, com adultério e quase revolta pelo meio. É o vício dos intelectuais, este gosto pela conversa em qualquer circunstância"



Trechos presentes no romance "Mayombe" (Leya, 2013), de Pepetela.

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